MIGRAÇÕES
(retirado do livro Descolonizar o sujeito poético, Editora Urutau, 2023)
- das aves
no fim deste voo começa
a derradeira viagem ao interior
do corpo
sem nacionalidade que reclame
os valores existenciais de um beijo
ninguém me poderá acusar
de roubar as coordenadas de um país
sem passaporte de residência
para corações abandonados
talvez seja sobre isso
a política das leis
que defendem pedaços de terra
como órgãos expostos ao lugar-comum
dos dias
mas o som das asas eleva a solidão
ao expoente das superfícies:
ninguém esquece a casa onde cresceu
mesmo quando todos os jardins
morreram com as estações mais frias
e todas as flores são agora memória
pousada sobre o tempo
abandono o chão e reconheço
o meu reflexo sobre a água
sobrevoar-te é o mesmo que dizer
o fim das fronteiras
- das plantas
a sombra da minha infância
é a das árvores
que não transporto comigo
regresso às fotografias de um passado possível
para saber do cultivo da herança:
há na margem da folha onde escrevo
vestígios dos meus avós
a colherem laranjas em quintais distintos
raízes são apenas testemunhos
da distância que já percorremos
sou além de um código postal
plantei sementes na ruína
pertenço a qualquer campo que preserve
oliveiras, embondeiros
estruturas confluentes com os terrenos
que abandonei sem visitar
emigração
palavra cara ao preço de uma planta
que sabe apenas soletrar a sua origem
por enquanto vou ficar
qual pátria se não a do nome
III. das pessoas
reféns ao batimento cardíaco do mundo
para testemunhar a ausência de um verso
porque um poema também é exílio
pergunto
aonde vamos quando dormimos
é tanto o solo para tão pouco
consolo da nação a que pertences
decerto já pensaste em visitar quem te morreu
sem atravessar os limites do futuro
para reconhecer que nem sempre viver
é sinónimo de pertença
há quem se aqueça da inocência de um abraço
para evitar a rejeição de uma barreira invisível:
imigra antes para dentro da palavra
país sem a maternidade fundamental
de te habitar
será chegada ou retorno
a viagem migrante ao princípio
do corpo
Sara Duarte Brandão nasceu no Porto, em 1997, mas sente-se de todos os lugares que moldaram a sua infância como Escalos de Baixo e Arouca, onde teve a sorte de ter avós. Licenciada (2019) em Design de Comunicação pela FBAUP e Mestre (2022) em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela FLUP. Em 2018, venceu o Prémio Literário NORTEAR com o conto “(Ver)”. Cocriou o projeto Knit&Wine que promove encontros intergeracionais de tricô no Porto, desde 2019. Em 2020, cofundou a Truz Truz Editora, de literatura infantojuvenil, na qual é designer e autora. Em 2022, frequentou o curso de facilitadores em Criação Artística Comunitária da Pele Associação Social e Cultural e cocriou o projeto musical Abondai, um dos vencedores da Residência Artística “Cacarejo N’Aldeia” do Centro e Laboratório Artístico de Vermil. Em 2023 venceu o Prémio Literário Cidade de Almada — Romance. A sua obra “CriÁrvore”, da Truz Truz Editora, foi recomendada pelo Plano Nacional de Leitura. Publicou o seu primeiro livro de poesia “Descolonizar o sujeito poético” (um dos vencedores da Chamada Portugal da Editora Urutau e Menção Honrosa do Prémio Glória Sant’Anna 2024). É doutoranda e bolseira FCT no Programa Doutoral em Ciências da Educação da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Integra projetos que cruzam várias áreas artísticas como o teatro, as artes plásticas e a literatura.§