Cultura

Maria Mazarello: a trajetória da mulher que ‘empreteceu’ o universo da edição no Brasil | Márcia Maria Cruz

“Maria Mazarello – preto no branco, lutas e livros”, de Márcia Maria Cruz.  Editora Contafios. 144 páginas. 2021

 

A trajetória de Maria Mazarello Rodrigues, que se confunde com a história da Mazza Edições, traz consigo marcas da personalidade da menina de Ponte Nova, cidade da Zona da Mata em Minas Gerais: certa obstinação pelo bom uso das palavras, vocação para o desconhecido e a busca pela identidade negra que, embora pareça um caminho de quem teve avó nascida ainda na vigência da Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871), no caso dela desembocou em uma conquista coletiva. 

 

Mazarello fundou, em 1981, a Mazza Edições, casa editorial voltada para a publicação de autores e autoras negros e especializada em temáticas relacionadas às questões étnico-raciais. No entanto, como uma mulher da práxis,  Mazarello nunca se colocou a filosofar sobre o que representava uma mulher negra vinda de uma família pobre do interior de Minas Gerais, sem posses ambicionar abrir uma editora.  Fez! Criou a primeira editora voltada para autoria negra. 

 

“É preciso ressaltar que o investimento vital de Mazza foi construído em uma área até então desconhecida para a iniciativa negra: o campo da publicação, da editoração de livros. E esse espaço desbravado e firmado por Mazza nos traz à memória o trabalho de Francisco de Paula Brito (1809-1861) com a sua gráfica, tornando-se o precursor da Imprensa Negra Brasileira e também o primeiro editor de Machado de Assis (1839-1908)”, escreve Conceição Evaristo na apresentação do livro.

 

A tarefa de dimensionar seu trabalho cabe aos estudiosos do campo editorial. E confesso que foi uma missão que me coube quando aceitei o desafio de perfilá-la: Mazarello e a casa editorial Mazza se confundem, não tem como falar de uma sem se referir à outra.  

 

E a história da Mazza Edições também é a história de autores fundamentais que tiveram lá abrigo Conceição Evaristo, Edimilson de Almeida Pereira, Cidinha da Silva, Cuti para ficar em nomes aclamados e ganhadores dos mais destacados prêmios da literatura brasileira.

 

Mazarello não se colocou a elaborar um plano de negócio, com metas a médio e longo prazo, captação de recursos para  investimento e  capital de giro – como poderia ser-lhe exigido caso seguisse lições empresariais. 

 

Tivesse ela se guiado por manuais de administração, certamente, eu não estaria escrevendo sobre os 40 anos da Mazza Edições.  Ninguém sem capital, apoio financeiro familiar, sem amigos com posses abriria um negócio de risco como é uma editora de livros no Brasil.

 

Mazza é uma dessas pessoas encantadas que acessam dimensões da vida que não são apenas da ordem prática. Em momentos de aperto financeiro com o caixa de outra editora que comandou, a Grafiquinha recorreu a Santa Rita de Cássia, de quem é devota. Uma das melhores histórias é a forma como ela resolveu cumprir uma promessa de maneira bem engenhosa, uma novena. A novena, que deveria ser feita em dias, ela resolveu em questão de horas. 

 

Na juventude pisou pela primeira vez em uma gráfica, a do Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (Pabbae), quando a família já vivia em Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais. Deixou-se seduzir pela arte de fazer livros, aprendeu a técnica no “chão de fábrica” e nunca mais largou esse vício. 

 

O gosto pela edição de livros está no mesmo patamar de pescar –  duas paixões a que dedica a vida.  Uma terceira paixão é o Vila Nova, time de futebol do coração, que ela conheceu ainda adolescente, quando viveu no bairro que abrigava um campo de futebol de várzea na capital mineira.

 

O que salta aos olhos é o amor pelos livros, como leitora e como editora. Mas não um sentimento meloso, romantizado, Mazza não é dada ao sentimentalismo. Vive um amor que nasce no cotidiano e se traduz numa entrega completa na realização de uma tarefa. No entanto, colocar a mão na massa não significa que ela não tenha sido guiada por um pensamento sofisticadíssimo. 

 

Reflexões elaboradas na universidade quando jovem, na Fafich – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG,  época em que estudou jornalismo; tempos depois, na PUC Minas – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, já como professora, e, posteriormente, na França, onde seguiu com o amigo Paulo Bernardo Vaz para cursar o mestrado em editoração na Universidade Paris-XIII.

 

Se tivesse avaliado o cenário que encontrou na década de 1980, quando voltou ao Brasil, talvez não tivesse começado o empreendimento. O universo editorial era hostil às pessoas negras, não havia espaço para os escritores negros muito menos para editores negros, menos ainda para uma mulher negra e editora. 

 

Do ponto de vista político e econômico, o Brasil passava por momentos de turbulência em meio à ditadura militar.  Fosse balizar sua decisão pela experiência na Editora Vega, que ajudou a criar e administrar durante a ditadura militar, objeto do mestrado na França, também não seguiria nesse ramo. Passou por altos e baixos para manter abertas as portas da  Vega, viu amigos serem perseguidos e até presos pelo regime militar.

 

Mazza quis seguir navegando por mar revolto sem qualquer certeza de que a tempestade se dissiparia e avistou terra firme. 

 

A ideia de fundar uma editora especializada na temática étnico-racial nasceu em Paris, como se um anjo tivesse soprado no seu ouvido “Mazza, volte e abra uma editora no Brasil”. Terminou o mestrado e retornou ao seu país com esse propósito.

 

As malas trazidas da França vieram abarrotadas da convicção de que era preciso criar um espaço para a intelectualidade negra no Brasil. Porém, reconheceu o dilema em que se colocou: onde  encontraria essa intelectualidade negra no Brasil? O catálogo da Mazza Edições, no entanto, é a resposta à pergunta. Não conhecia os intelectuais negros e se dedicou a essa tarefa de buscar autores, autoras negras e ilustradores.

Em seu perfil biográfico, tento desvendar a personalidade dessa mulher que, contra todos os prognósticos, abriu caminhos para uma coletividade que ainda não tinha vez no mercado editorial brasileiro. 

Minha tarefa ao perfilá-la foi voltar à Ponte Nova para conhecer a menina Mazza – a chave do mistério Mazza Edições. Como aquela mulher tão baixinha poderia ser tão destemida e brava e por isso obstinada ao ponto de ocupar o lugar da edição até então  dominado majoritariamente por homens, brancos e da elite intelectual? 

Quem me leva pelas mãos narra a história. Talvez por ser pescadora ou por ser filha de Amarillis, mulher que gostava de ler best-sellers, Mazza é uma contadora de “causos” nata. Não tem como contar sua história melhor do que ela, a própria, às gargalhadas pelos momentos saborosíssimos vividos em oito décadas. 

Conta de um jeito que nos coloca aos seus pés para ouvir o que tem a dizer – e sempre me vem à cabeça a imagem de uma griot.  Diante desse jeito de contar que é só dela, eu não teria nenhuma forma que pudesse superar sua poesia, nem gostaria. Então, nasce um perfil biográfico romanceado em que a voz de Mazza é evidente, no seu estilo e jeito de ser. O narrador seguiu com ela, alinhavando as temporalidades.

PRÓLOGO – No dia 11 de março de 2022, liguei para desejar felicitações à Maria Mazarello pelos 81 anos de vida. Perguntei como estavam as comemorações, e ela me respondeu que o dia estava bastante alegre dado o grande número de mensagens recebidas por textos ou telefonemas. Comemoramos a boa recepção do “Maria Mazarello: preto no branco, lutas e livros”, da editora Contafios, livro que escrevi sobre ela a convite do fiel escudeiro Pablo Guimarães. 

Lamentamos que devido à pandemia da COVID-19, que impôs o isolamento social como uma das medidas mais eficazes para barrar o avanço do novo coronavírus não pudemos realizar um evento para o lançamento presencial do livro. No entanto, a venda online permitiu que os exemplares chegassem a leitoras e leitores, inclusive com dedicatórias escritas por nós duas.

Considerei contar para Mazza, com risco de parecer piegas, coincidentemente, no dia de seu aniversário que havia me emocionado muitíssimo ao ler a resenha de Cidinha da Silva sobre o livro, para o Suplemento de Pernambuco. 

A leitura da resenha me permitiu certo distanciamento e desprendimento após a imersão necessária à feitura de um perfil biográfico, quando ainda há certa simbiose com o perfilado. Dei-me conta da tarefa que assumi ao escrever o perfil biográfico de Mazza: trouxe a público a trajetória de uma mulher que mudou a edição no Brasil. Não há exagero.  

* Cidade de Minas Gerais, da Zona da Mata Mineira. 

Maria Mazarello – preto no branco, lutas e livros

Márcia Maria Cruz

Apresentação Conceição Evaristo

Editora Contafios

144 páginas

2021 

www.editoracontafios.com.br

MAZZA EDIÇÕES

Ao longo de mais de quarenta anos de atividades, MAZZA EDIÇÕES reafirma seu compromisso de levar o melhor da cultura brasileira e afro-brasileira aos seus leitores.

Reflete em seu catálogo o empenho de escritores e leitores, que acreditam na construção de uma sociedade baseada na ética, na justiça e na liberdade. Acreditando nisso, investiu na publicação de autores / autoras negro(a)s e de livros que abordam os diversos aspectos da cultura afro-brasileira relacionada, por sua vez, a um largo segmento das populações excluídas no Brasil. No tocante a essa temática, a Editora se tornou referência nacional e internacional, na medida em que contribui para os debates acerca da diversidade sócio-cultural de nosso país.

Suas áreas de atuação são: Antropologia, Sociologia, História (publicações referentes às práticas do sagrado, aos movimentos sociais e à formação da historiografia brasileira), Educação (publicações sobre as relações entre escola e sociedade, material didático e paradidático), Literatura Brasileira (prosa e poesia contemporâneas), Literatura Infantil e Infantojuvenil (coleções interativas e paradidáticas, livros de imagens).

Com o objetivo de ampliar sua atuação no mercado de obras infantis e infantojuvenis, Maria Mazarello Rodrigues aposta na criação de seu novo selo editorial, a PENNINHA EDIÇÕES. O nome do novo selo é uma homenagem à sua mãe, Amarilles Pena Rodrigues, falecida em 1978.

Em face dos desafios gerados pela nova ordem social no Brasil e no mundo, com destaque para a aceleração do fluxo de informações, a MAZZA EDIÇÕES se propõe a atuar com sentido crítico para oferecer aos seus leitores e clientes obras que contribuam para uma melhor compreensão do passado, do presente e do futuro a ser construído. E não poderia ser outro o desejo de todos os que fazem da MAZZA EDIÇÕES uma editora e, mais que isso, uma casa de cultura viva.

https://mazzaedicoes.com.br/catalogo/

 

Maria Mazarello Rodrigues é uma jornalista e editora brasileira, Mestre em Editoração pela Universidade Paris-XIII e fundadora da Mazza Edições, editora que criou em 1981. Nasceu em Ponte Nova no dia 11 de março de 1941, filha do casal Amarillis Penna Rodrigues e José Emydio Rodrigues. Trabalhou no Pabbaee*. Foi co-fundadora em Belo Horizonte das Grafiquinha, Editora do Professor e Livraria do Estudante.  Também fez parte da Editora Vega, que abrigou intelectuais importantes no enfrentamento à ditadura militar no Brasil. À frente da Mazza Edições, já publicou mais de 500 títulos. Foi a primeira a publicar a escritora Conceição Evaristo.

 

Márcia Maria Cruz é uma jornalista brasileira de Belo Horizonte. É coordenadora do Núcleo de Diversidade do jornal Estado de Minas, onde trabalha desde 2007.  É doutora em Ciência Política e mestre em Comunicação Social pela UFMG. Atualmente, integra o Coletivo Lena Santos. Coordenou o curso de Jornalismo na Una e lecionou sobre o mesmo tema na PUC Minas e na Faculdade Promove. É autora do livro “Morro do Papagaio”, que faz parte da coleção BH. A cidade de cada um. Integrou o International Visitor Leadership Program em Media literacy nos EUA em 2018. Colaborou para o observatório “De olho nos ruralistas”.

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