Iacyr Freitas: 40 anos de percurso literário | Adelto Gonçalves
Fotografia de Iacyr Freitas. Fonte: armonte.wordpress.com
I
Para comemorar o 40º aniversário de sua estreia literária, o poeta Iacyr Anderson Freitas (1963) acaba de lançar Os campos calcinados (São Paulo, Faria e Silva Editora, 2022), que reúne toda a sua produção lírica escrita após o seu livro anterior, Estação das Clínicas (2016), além de poemas que até então figuravam apenas em periódicos nacionais e estrangeiros. A exemplo de obras anteriores, os poemas do novo livro trazem a cáustica ironia e o sentimento de perda que são características marcantes do seu itinerário literário.
Dividida em cinco partes bem distintas – “O cerol no ouvido”, “Menos café que cicuta”, “Perder um país”, “Este mínimo infinito: breviário” e “Limão Capeta” –, a obra traz peças que fundem o pictórico com o sonoro, expressando o sentimento do poeta em imagens que valem por si mesmas. O poema “A derradeira”, que consta da terceira parte, é um bom exemplo disso: “a manhã curvou seus sinos aos escolhidos / : tu estavas dormindo / veio silenciosa / brindar os passantes / com a última rosa / branca enorme esplendorosa / a última / a derradeira rosa / a manhã curvou seus sinos / sobre o sono dos vencidos / era domingo / adeus vida que não veio / vento que acende os aceiros / adeus amores de outrora / vela que se queimou no vime dos veleiros / : a manhã devora / a última rosa”.
A imagem que se desprende da frase “a vida que não veio”, de certo modo, repete-se em “Abaixo, no lugar de rancor, use a palavra amor”, poema que consta da primeira parte, pois traz o mesmo sentimento que evoca um poema de Manuel Bandeira (1886-1968), “Pneumotórax”, que fala de “uma vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Segue o poema: “nada como um rancor não correspondido / no lugar da dor / o olvido / nenhum remorso / nenhum ódio ressentido / nenhuma palavra / como navalha / no ouvido / somente o vazio o vazio infinito / do que não foi / vivido”.
II
Considerado pelo escritor e jornalista Luiz Ruffato um dos maiores poetas vivos da língua portuguesa e o maior nome de sua geração, Iacyr Anderson Freitas, que também já foi apontado pelo poeta e ensaísta Alexei Bueno como um dos grandes representantes de lírica brasileira, sabe como dar a seus versos um ritmo sinfônico, sem deixar de se dirigir ao intelecto de seus leitores, utilizando-se da metáfora para produzir a emoção estética.
Ou seja, como observou outro poeta de sua geração, o ficcionista, ensaísta, professor e pesquisador da cultura e da religiosidade afro-brasileiras Edimilson de Almeida Pereira, a poética iacyriana consiste em reconstruir – com pensamentos e afetos – os lugares onde a hipótese de reconstrução se desvaneceu. “Por isso, o poeta vem a ser mestre de si mesmo, hierofante de uma mitologia fragmentária e profundamente apelativa”, diz Pereira.
Sem ostensividade, o poeta sabe também ser extremamente político e radical na defesa dos princípios democráticos, ao condenar por extensão métodos totalitários que, nos últimos anos, no Brasil, têm conquistado muitos corações (e cérebros) desavisados, como se pode ver no poema em homenagem ao psicólogo austríaco e judeu Viktor Frankl (1905-1997), autor de Em busca do sentido (1946), em que este descreve a sua experiência dramática e a de sua família em quatro campos de concentração nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
No poema, são citados os nomes daqueles campos de concentração, que funcionam aqui como uma metáfora, ou seja, “uma transposição fundada na abstração e na semelhança”, para se repetir uma citação do crítico alemão Hedwig Konrad (1888-1966) que consta de Étude sur la métaphore (1958), p. 38, e reproduzida por Massaud Moisés (1928-2018) em A criação literária: poesia (2003).
É deste poema que também sai o título do livro, numa referência a campos queimados, transformados em cinzas, tal como ocorre hoje na Amazônia, por aqueles que defendem ideais autoritários, praticam o terrorismo de Estado e defendem interesses que se opõem aos anseios da coletividade. Segue o poema: “são vastos os campos para o plantio / mas eu conheci glebas estéreis / terras que se extraviaram de seus rios / terras em que uma só flor exigia o sangue e o viço / de mil novilhos / léguas e léguas de lavras / onde para cada árvore / um só homem deveria alimentar / cem cadáveres / theresienstadt / auschwitz / kaufering / türkheim / campos calcinados / onde os melhores frutos / são furtos / ou traem”.
Outro poema em que se constata metaforicamente o registro da história recente do Brasil é “Golpe 2016” que alude ao ato parlamentar que depôs naquele ano a presidente eleita para preparar a ascensão de representantes da direita autoritária: “eu estava no hotel / em Lima / três andares acima / deram-me a notícia / : de novo a política / a serviço da sevícia / eu em Lima / três andares acima / agarrei com força o passaporte / (que fiz meu deus que fiz?) / sim eu ainda tinha / o passaporte / : perdera apenas meu país”.
III
Iacyr Anderson Freitas, nascido em Patrocínio do Muriaé, no Estado de Minas Gerais, é engenheiro civil e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)-MG. Fez sua estreia na poesia em 1982, com a obra Verso e palavra. Desde então, publicou mais de vinte livros, tendo afirmado sua voz no cenário do Brasil contemporâneo, já com várias premiações, inclusive no exterior. Está presente em mais de 20 antologias publicadas no Brasil e no exterior, incluindo Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos, Espanha, França, Itália, Malta e Portugal.
Com Quaradouro (2007), foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom), e com Viavária (2010), primeiro lugar no Prêmio Literário Nacional do PEN Clube do Brasil. Além dessas, publicou mais três obras de poesia: Messe e Lázaro, ambos vencedoras do Concurso Nacional de Literatura da Cidade de Belo Horizonte, e Terra além mar, antologia publicada em Portugal.
Publicou três livros de ensaio literário: Heidegger e a origem da arte (1993), Quatro estudos (1998) e As perdas luminosas: uma análise da poesia de Ruy Espinheira Filho (2001). E dois livros de ficção: O artista e a cidade (2000), álbum comemorativo dos 150 anos de emancipação política de Juiz de Fora, e Trinca dos traídos (2003), que obteve a menção especial no Prêmio Literário Casas de las Américas, em Cuba, sendo também incluído na lista de obras literárias de leitura obrigatória para os vestibulandos da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.
De 2013, é Ar de arestas (São Paulo/Juiz de Fora, Escrituras Editora/Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa), finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom. Publicou ainda três livros de poemas para o público infanto-juvenil. Reside em Juiz de Fora.
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Os campos calcinados de Iacyr Anderson Freitas. São Paulo: Faria e Silva Editora, 226 páginas, R$ 62,00, 2022. Site: fariaesilva.com.br E-mails: contato@fariaesilva.com.br iacyrand@yahoo.com.br iacyrand@gmail.com
Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br