Habibi
A luz tripudiou pelas cristas da janela, informe. Não era possível discernir o oráculo impregnado no lugar. Havia, indistintas, pólvoras e cinzas de memórias ainda despertas. E, de certa maneira, inerte, era presumível que houvesse um gozo mórbido por parte de minha amada tia, muito apegada às tragédias e às vicissitudes, como relatara: naturais à sua sina. Ademais, imagino que isso tem a ver com o fato de ela ter morado vinte e tantos anos no Líbano, fugida com a família – inclua-se o meu pai, seu irmão – em meados da década de setenta. E, por infelicidade, nada é mensurável – porque titia não se dispôs a qualquer acompanhamento psicólogo ou psiquiátrico. Depois da morte de meu pai, Youssef, ocorreu o previsível: ela se afundou ainda mais em desordem. Digo isso porque fiquei sempre ao seu lado, já sabendo de sua imensa dificuldade para transpor os mínimos obstáculos da vida. E não falo com pouco caso ou desânimo: titia, que adotou o nome de Nair, dada a semelhança vocálica com Zayn, nunca me negou a atenção. E, talvez, foi a única na família a me pôr a par da minha cultura ancestral; fazia questão de preparar as esfihas, kebbah cru, tabbouli e coisinhas do gênero. Como de costume, aportávamos em sua casa aos domingos para as refeições matinais e quedávamos aí até o fim das tardes, ensolaradas, com o famoso oud de meu pai a soar, acompanhado pelo derbak de meu tio, ambos instrumentos herdados de meu avô, Kalil Youssef. Com estas poucas linhas, creio que a leitora deve ter construído um cenário de afeto e de renovação, um cantinho do Líbano escondido no interior de São Paulo, em Penápolis. É bem verdade. Nosso clã se firmou com a venda de tecidos, principalmente. Titia, com os seus dotes culinários, abriu com a irmã, tia Nouhad – mais conhecida como Noah –, um restaurante no centro da cidade. Mas não deu muito certo, em razão, sobretudo, da clientela – ignorante e desinteressada pelos produtos – e pela dificuldade, à época, de se comprar matéria prima de qualidade, como reclamavam; a carência para os preparos finos. Foi o jeito, com o tempo, tia Nair vender os seus quitutes às famílias curiosas ou seduzidas pelo paladar diferente, que aí podia contar com o prefeito e a sua esposa, Soriano e Bernadete, seus maiores benfeitores, nunca olvidados, ainda guardados e reverenciados em porta-retratos em seu gabinete. Desse modo, ela se virou como pôde, conseguindo, por fim, depois de anos de dura labuta, comprar a sua casinha – desta que hoje relato a história. Um detalhe é que titia, murcha de ventre e não achando homem simpático para se casar, resolveu ficar para titia, dedicando-se, com muito zelo, aos seus oito sobrinhos. Sendo eu o mais velho, o primeiro e tão desejado da leva, ela convergiu seus anseios me cobrindo de beijos e carinhos; deixando e me buscando na escola; passando tardes comigo, dançando e cantando ao som de Fairuz, Sa’altak Habibi; rodopiando pela sala, exultante por minha presença. Porém, foram momentos episódicos, que eu poderia contar nos dedos; memoráveis. No mais das vezes, permanecia calada, escondida em seu quarto, com uma justificativa quase plausível de estar rezando. Era bem verdade que a via zanzando, ou até cozinhando, com um terço na mão. De tão prática no assunto, penso que, numa manhã, rezava duas ou três novenas. A salvação para os momentos mais aflitivos era a igrejinha, que ficava a três quadras de casa, na qual poderíamos encontrá-la nos finais de tarde, nas missas das 17h. O que importa dizer aqui, como modo de conformação, é que tento, com todas as forças, resgatar a alma de minha tia, atrelada ao céu ou ao Líbano – o seu céu particular. Num átimo de iluminação, decidi dar-lhe o melhor presente: comprar as passagens para o nosso país de herança. Entretanto, em março de 2020 o tempo parou: estourou a pandemia. Aeroportos e países fechados, essa era a notícia que circulava por todo lado. Pelo visto, nossas vidas estavam em perigo, ao menor indício de um passo em falso; mesmo aqui, no interior do Estado, esquecidos do mundo. A ideia da viagem fez todo o sentido quando, em agosto de 2020, dormindo um sono profundo, como não acontecia há tempos, titia ressonou palavras em árabe, pouco audíveis, que só um expert em Nair poderia decifrar. Aos meus ouvidos atentos, calharam as límpidas palavras: “Meu querido, meu amor, ainda estou aqui. Vamos nos amar para sempre, até a eternidade”. Lógico, isso me causou uma enorme comoção, estaria se referindo a um amor que ficou no Líbano, e eu teria de providenciar o encontro com esse alguém que precisaria descobrir; iria descobrir. Quando a questionei sobre o sonho – claro, com todo o cuidado, para não a chocar –, ela desconversou, riu e disse que era alguma bobagem de uma cabeça envelhecida. Juntei os meus mirrados dinheiros, de uma economia que fazia há cinco anos, para, no momento propício, concretizar o bendito passeio. Se não fosse de ver o suposto amor, iria ao menos rever as ruas, as montanhas e o frio que ninaram os seus dias providenciais. A vontade já me consumia, almejava que partíssemos logo que tudo estivesse em ordem – ou na ordem possível –, acreditando piamente que em meios de 2021 estaríamos todos livres desse vírus, seja por consequência de algum maravilhoso destino, seja pela mão de Deus: vacinados, enfim. Aprendi com titia que um homem prevenido vale por dois. Fiz a compra das passagens, sendo informado pela atendente da companhia que poderia, se fosse o caso, remarcar: “Esse é um procedimento legal e de praxe. Não precisa se preocupar, senhor”. As datas são dezenove de agosto a dezoito de setembro de 2021. Eu estava em êxtase por proporcionar essa alegria à titia; queria gritar para o mundo, contar a ela, mas a prudência me impedia. Intuo que ela não suspeitava, mas, de uns meses para cá, se mostrava mais esperta, animada; renovara a casa com muitas plantas; tornou-se cintilante, como eu tanto imaginei – avalie com a graça alcançada. Numa noite fresca de domingo, ela me relatou um íntimo desejo: “Sabe, meu filho, eu tenho um pressentimento bom de que logo, logo visitarei a minha terra. Há tanto espero… Nosso bom Deus proverá, um dia…”. Vagou longamente, olhando o teto imenso de branco, como nas montanhas do Monte-Líbano; sorrindo, enquanto uma gota descia e acendia a sua face. Eu retribuí o encanto, meio desconcertado, sem demonstrar o contentamento que ardia em transcender o meu corpo. A glória, sem prévio aviso, dimensionando os meus sonhos: a informação de que seríamos vacinados em maio; ela, pela idade, e eu, em decorrência da asma, que, nesta hora, teve a sua valia. Seguro, afinal, pude contar sobre a aventura à titia. Não havia mais dores. As pernas voltaram à juventude, de pulos que dava com as mãos levantadas para o céu. “Tabarak allah”, repetia, aos gritos. “Shukraan, habi!”, beijando-me e benzendo-me em efusivas provas de amor. O prodígio aconteceu diante dos meus olhos e, para mim, nada mais importava.
Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista “Samizdat”. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.