Poesia & Conto

Dois poemas | Vera Duarte

A rapariga do vestido azul

 

O meu vestido azul ultramarino 
Feito de miosótis e flocos de neve 
Cobria a minha nudez 
De códigos amarrotados 
E desejos por saciar 

 

Em fogo me entreguei a ti 
Trémula ardente carente 
Num tempo devorado pela peste 
Em toda a minha nudez 
Vestida de azul ultramarino 

 

Em fratura exposta 
Na urgência do desejo 
Meu coração se rendeu desesperado 
À paixão da carne intumescida 
Que incendiou meus sonhos de ti 

 

Meu vestido azul ultramarino 
Bordado de miosótis e flocos de neve 
Que cobria minha nudez 
Não cabe mais em mim 
Neste destino implacável 
Que tu me decretaste 

 

Meu vestido azul ultramarino 
Em flocos de neve bordado 
Ficou abandonado 
Sujo e destroçado 
Num qualquer porão negreiro 
Junto a meus sonhos esfrangalhados

 

Requiem

 

No cabo do medo 
A vida nada vale 
Sequer o choro de uma criança 
Sequer a dor de um velho 

 

No cabo do medo 
Só fome e ganância 
Se cruzam nas ruas poeirentas 
E nos veios de gás e minérios 

 

Em que esquina do tempo 
Se perdeu a humanidade 
Em que praia de Mocímboa 
A morte se multiplicou?

 

El shabab, daesh 
Estado islâmico, boku haram 
São as vestes da morte 
À solta em Cabo Delgado
 
Em que esquina do tempo 
Se perdeu a humanidade 
Em que Palma em que Pemba 
A morte se multiplicou? 

 

Com o coração sangrando eu peço 
Com a voz agonizante eu suplico
Um requiem para Cabo Delgado 
Um requiem para o cabo do medo

 

Fotografia de Vera Duarte

 

Vera Duarte é uma jurista e escritora de Cabo Verde. Os seus mais recentes livros são Vénus crioula, editado pela Rosa de Porcelana, e Urdindo palavras no silêncio dos dias, editado pela Kotter.

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