Considerações várias sobre a História e os historiadores em Portugal | Cecília Barreira
Sérgio Luís de Carvalho, historiador, tem feito um trabalho sistemático de levar a História às pessoas com uma grande capacidade de as seduzir.
Tenho acompanhado esse trabalho.
Agora um novo livro revela-se uma aposta segura: Quando o Coração Ordena (1128-1910) da Minotauro.
Para já uma escrita motivante. O autor sabe escrever. É um profissional.
As estórias, por capítulos, deixam o leitor a querer saber ainda mais.
Durante muitos anos, a disciplina de História foi martirizada na mão de historiadores de qualidade científica, mas sem a menor noção de que do outro lado está um leitor.
Com exceção do brilhante A. H. Oliveira Marques, o introdutor da Petite Histoire no nosso país. Publicou em 1972 a muito célebre História de Portugal. Pela Presença.
Quando escreveu sobre A Sociedade Medieval Portuguesa (aspetos da vida quotidiana), volume de há muitos anos, estava a ser inovador. Fez uma digressão em torno do que se comia, dos afetos, do que se vestia, das distrações, da conceção de morte, etc.
Provavelmente, o pioneiro na história do quotidiano.
Há um antes e um depois dos estudos de história de A. H. Oliveira Marques.
Conheci-o na NOVA FCSH. Não era uma personalidade de fácil contacto.
Mas o que interessa é a sua produção científica.
Tenho a certeza que Sérgio Luís de Carvalho, até por se inserir na especialidade de História Medieval, deve ter lido muito do que A.H. Oliveira Marques escreveu.
Aliás, grande parte dos historiadores provieram da História Medieval. Luís Krus, que morreu jovem, ou José Mattoso, nome incontornável da História das Mentalidades.
A História Contemporânea tem os seus historiadores.
Sem dúvida que aí pontifica Fernando Rosas, o investigador que mais se deteve sobre o Estado Novo em Portugal.
A partir de Fernando Rosas, todo um conjunto de historiadores se tem dedicado a questões em torno das oposições ao dito Estado Novo ou a segmentos que por aí voltejam .
A História de Portugal dirigida por José Mattoso no Círculo de Leitores reuniu grande parte dos historiadores lusos em 1991.
É uma história monumental. Sem dúvida um grande passo de sistematização dos saberes historiográficos.
Mas curiosamente, dessa história, nota-se a ausência de A. H. Oliveira Marques e de todo um círculo de historiadores a ele mais chegados.
Se não fosse o historiador José Medeiros Ferreira, um historiador e político notável já desaparecido, eu própria teria sido arredada desse empreendimento. Mas como fiz um doutoramento e uma agregação nos saberes da Cultura, compreende-se que nunca fosse uma primeira escolha.
Voltando a Sérgio Luís de Carvalho. Alguém que conseguiu publicar sempre arredio dos meios a académicos.
O historiador António Reis, que dirigiu uma coleção sobre o Portugal Contemporâneo nas edições Alfa nos anos 80, sempre foi inclusivo com a vastidão de colaboradores.
Aliás, José Mattoso é outro nome de inclusão.
Quando há uns anos falei com um divulgador de saberes, desligado do mundo académico, ele referenciou que o que mais temia era esse universo de competição.
Acabei por fugir à História tradicional. Situei-me sempre nas áreas da Cultura e da Literatura. E com a emergência de grandes centros de investigação, tive a sorte de ser englobada pelo CHAM, o Centro de Humanidades onde me integrei através do historiador João Luís Lisboa, ligado aos estudos de Idade Moderna.
Contudo, as novas gerações deparam-se com problemas bem complexos. São investigadores e daí não passam. Praticamente ninguém entra na carreira da docência. Enquanto investigadores recebem bem menos dos que se integram na carreira.
Há que repensar os moldes dos salários, ainda por cima precários, dos investigadores.
Muitos dos que investigam são também professores do secundário.
Voltando a A. H. Oliveira Marques. Foi o historiador que mais divulgou a História de Portugal. Além do tal volume que foi passando de geração em geração pela Editorial Presença
A Nova História de Portugal, com a direção de Oliveira Marques e do historiador Joel Serrão é de 1991.
Num volume sobre Portugal da Monarquia para a República, há já um vasto capítulo sobre aspetos da Vida Quotidiana.
A Alimentação, o Vestuário, A Habitação, Higiene e Saúde, Amor e Sexo, Convívios, A Morte.
Sem dúvida muito importante no calcorrear da história do quotidiano.
Claro que lá se encontram também as questões políticas , culturais e de educação. Mas o volume ganha peso com os aspetos inovadores da descrição de um dia a dia.
Ora a História do José Mattoso surge em 1992.
Mas sem Oliveira Marques, o verdadeiro pioneiro nas matérias do quotidiano, se calhar muito ficava por ser realizado.
Quando eu própria ainda falei com Francisco Espadinha sobre uma História do Quotidiano, o já desaparecido diretor da Presença referenciou e bem o que se estava a fazer, quer com a História de Oliveira Marques, quer com o Círculo de Leitores.
À época não havia espaço para mais nada. A História de Oliveira Marques e a de José Mattoso imperavam.
Claro que a História que mais deu brado foi a de José Mattoso .
O início dos anos 90 fazia-se com a elaboração de duas Histórias de Portugal de grandes grupos editoriais. A Presença e o Círculo.
Claro que ambas notáveis e registando muito bem o estado da arte da historiografia nacional na passagem dos anos 80 para os anos 90.
José Mattoso passou a ser a referência certificada da mais qualificada historiografia.
Os muitos historiadores catapultados pela ocasião Círculo de Leitores seguem-se nos anos seguintes.
Uma multidão foi cativada pela Historia Contemporânea.
Motivados pelo historiador Fernando Rosas e não só. Centenas e centenas de dissertações de mestrado e doutoramento integradas nas visibilidades contemporâneas.
A Idade Média com nomes incontornáveis. A Arqueologia, também. A Idade Moderna. O Liberalismo, com Reis Torgal.
Até que surgiu a pedrada no charco seguinte.
Uma História da Vida Privada do Círculo de Leitores (Temas e Debates) em vários volumes, publicada a partir de 2010. À frente, José Mattoso.
Contextualizemos: em França, surgira por todo o lado, a Vida Privada através de George Duby e de Philippe Ariès. O Círculo publicara, ainda nos inícios dos anos 90, a História da Vida Privada dos reputados historiadores franceses.
Claro que, retomadas as forças, em 2010 surge em Portugal a versão lusa. O Círculo a marcar as narratividades da História.
Sem dúvida que, tal como se esperava, a História da Vida Privada foi um êxito editorial.
Todos os volumes muito bem elaborados.
O Círculo porque sempre esteve ligado a grupos internacionais do livro, pontuou e pontua a historiografia nacional.
Foi consensual a reunião de historiadores à volta de José Mattoso, que curiosamente nasceu no mesmo ano de A. H. Oliveira Marques. 1933.
Na História Contemporânea, e dos lados do ISCTE, António Costa Pinto e a Fundação MAPFRE têm pontuado com questões políticas da História Contemporânea. Por exemplo, História Política Contemporânea (1808-2000). Com Nuno Gonçalo Monteiro e outros (2019). E História Social Contemporânea (Portugal 1808-2000) com organização dos historiadores referenciados António Costa Pinto, António José Telo, António Barreto, Jorge M. Pedreira ou Nuno Gonçalo Monteiro. De 2020.
Da parte de outro grande grupo editorial, a Dom Quixote, a investida pela História com Rui Ramos. Por exemplo, A Monarquia Constitucional dos Braganças em Portugal e no Brasil (1822-1910), de 2018.
António Barreto foi o presidente da prestigiada Fundação Francisco Manuel dos Santos e da Pordata até 2014. É autor prolixo de estudos sociológicos fundamentais.
A História está cada vez mais viva.
Há uma grande atração pela História.
Bom sinal.
Cecília Barreira é actualmente professora de Cultura Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa. Pertence ao CHAM, onde é investigadora de periódicos. Pertence aos grupos de pesquisa AMONET e IRENNE, sobre questões de género. Licenciada em História, com Doutoramento e Agregação em Estudos Portugueses, interessa-se particularmente pela História das Mentalidades. Publicou diversos ensaios e livros de poesia e neste domínio, estreou-se em 1984 com Lua Lenta. Seguiram-se A Sul da Memória (1987), Memórias de uma Deusa do Mar (1995), 15 anos de Alguma Poesia (1999), 7&10 (2003) e Cartas BD (2005), As Opções Ideológicas e o Fenómeno Feminista em Portugal (2009), Do Diário de Lisboa à Revista Maria (2016), Quirino de Jesus e Outros Estudos (2017), Voando sobre um Ninho Fêmeo (2019), Sangue, Suor Lágrimas, Incêndio e Não me Amasses (todos em 2021)