A liberdade e a raiva do perro aragonés | Danyel Guerra
Tenha cuidado. Sinto que há em si tendências surrealistas.
Jean Epstein
O motorista aciona, de supetão, o freio e para o automóvel no acostamento. E não demora a balear o alvo, seu assistente de direção, sentado na boleia. (…) Afaste-se dessa gente. O visado reage, exibindo uma cara de espanto, que estampa o som do silêncio. A réplica, projetada num ecrã parisiense, não demorará a ser dada, com uma irreverência tão profana quanto irredenta…
“Posso dizer tudo o que penso? É a escrita automática!”(1) Em sua edição de junho de 1954, a revista ‘Les Cahiers du Cinéma’ inseria uma entrevista crucial com o diretor hispano-mexicano Luis Buñuel. Nesse tempo, ele era celebrado na Europa por ser autor de uma tríade maldita, malgrado seu Los Olvidados (1950) ter emocionado Cannes a ponto do festival lhe ter atribuído a palma de melhor diretor.
Escrita automática? Será que aos 54 anos, o pai da mexicana ‘Susana’ ainda se entendia fiel aos conceitos teóricos e aos procedimentos formais da finada guilda, na qual foi iniciado em 1928, pela mão de Louis Aragon e de Man Ray? Chegado a meia-idade, o rebelde persistia em menosprezar o paternalista conselho de Epstein?
Por mais anacrônico que aparente ser, D. Luis continuava sendo um surrealista. Um estado de alma que só poderia surpreender quem, de todo, desconhecesse sua gesta, sua opera. Para todos os (d)efeitos, o nascido na aragonesa Calanda viveu e morreu surrealista. E passou a vida de 83 anos traçando o olho do real com uma navalha voraz.
Uma verdade que pode ser expressa de maneira paradoxal: ele já era surrealista, antes de se tornar surrealista (2). Estudante em Madrid, ainda ignorando a existência do grupo, já havia intuído, a exemplo de Breton, que “a revolta e a rebelião são a única luz criativa. Essa luz só pode levar a três caminhos: Liberdade, Poesia e Amor.”
“O escândalo não existe mais…”
Não foi, na certa, por acaso que o diálogo entre esse insurgente indomável e os críticos do Cahiers tenha começado por aflorar as incidências épico-burlescas que marcaram a realização dos dois primeiros filmes, sob os sediciosos auspícios do ideário surrealista.
Un Chien Andalou (1929) e L’Âge d’ Or (1930) são conterrâneos do progenitor. Ou Paris não fosse sua seminal terra-natal (3 ). O primeiro ensaio seria financiado pela mãe, que lhe empresta…deu o dinheiro necessário. Ab initio, Buñuel concluira que nenhum(a) produtor(a) estaria receptivo/a a financiar um projeto tão inusitado e bizarro.
A curta-metragem – escrita e dirigida em parceria com Salvador Dali-, redundou num clamoroso êxito de crítica e de bilheteria. Manteve-se oito meses em cartaz no Studio 28. E o felizardo Luís terá arrecadado oito mil francos, o que na época não era nenhuma bagatela.
O princípio radioativo deste choque frenético foram eles obtê-lo em dois sonhos. ‘Contei-lhe que sonhara com uma nuvem fina cortando a lua e uma navalha fendendo um olho”, confessa Buñuel em sua autobiografia, Mon Dernier Soupir. “O Dali me contou que vira, em sonhos, na noite anterior, uma mão pejada de formigas.”
https://www.youtube.com/watch?v=cB7gd_t6WMQ
Devidamente friccionado, esse imaginário, eivado de tanto despautério, expressava-se perfilhando o cânon surrealista da “escrita automática/ psíquica”. Uma semana terá bastado ao duo para elaborar o roteiro. As filmagens decorreram ao longo de uma quinzena. “O grande masturbador”, porém, só pintou nos estúdios nos últimos dias das rodagens.
O filme nos atrai e nos repugna logo no prólogo, polarizado na arrepiante cena da seção de um olho por uma navalha, editada em paralelo com a imagem da lua toldada por uma nuvem. Embora tecnicamente mal resolvida, a sequência se perpetua como um intencional exercício de “montagem de atração”.
Segundo os relatos jornalísticos, duas espectadoras abortaram ao verem o olho da moça ser traçado ao meio, com a mesma descontração que um de nós fende um marron glacé. Meia centena de queixas foram registradas nas delegacias da Polícia, exigindo a proibição “deste filme obsceno e cruel.”
Nos nossos dias, esse “crime” já não compensa… Nem em 1955, ano em que, num bistrô parisiense, Buñuel ouviu da boca de Breton uma desencantada constatação: “Meu caro Luis, o escândalo não existe mais.”
A raiva assanhada do Chien prosseguiu, verrinosa, gerando uma vertiginosa sucessão de cenas que não ambicionam, e até refutam, o mínimo nexo de causalidade diegética. Esses 17’ de desacato do subconsciente indiciam ter um único sentido: o de não fazer sentido nenhum, semelhante às fragmentadas, desconexas, aleatórias imagens da mais trivial das elucubrações propiciadas pelo ménage à trois com Hipnos e Morfeu.
Em definitivo relapsa a tentativas de leitura com veleidades de coerência, a provocação subverteu a racionalidade da gramática cinematográfica, concebida por Pastrone, Griffith, Kuleshov e outros pais fundadores do Cinemarte.
Tais constrangimentos não impedem que alguém, sujeito a um estado alterado (mas não adulterado) de consciência interprete Le Chien… como uma alegoria paródica ao absurdo da existência. Ou conforme observou o mentor intelectual da farseta: “ é um apelo ao assassinato.”
Será mera coincidência, mas no mesmo ano, Sigmund Freud ultimava o livro O mal-estar na Cultura, onde, entre outras ilações relampeja a visão psicanalítica da existência de uma caraterística da natureza humana –a agressividade e a pulsão de morte-, que se ergue como arma de arremesso contra a civilização.
“Parece um filme americano…”
Abril de 1930. No palacete dos Viscondes de Noailles, L’ Âge d’Or conheceu uma avant première muito pouco auspiciosa, perante a fina-flor da beautiful Paris e a ausência do… realizador. Recepcionada com toda a deferência pelos mecenas (4), a assistência abandonou a sala às pressas e sibilinamente muda, quando a fita –de 60’– terminou. Aguentou 13 dias no cartaz, arrostando com as acintosas prensas da Imprensa direitista e prófascista.
Uma campanha orquestrada que até incluiu atentados bombistas. Como se fossem virgens grávidas de pudicícia, alguns exaltados protestaram em fúria seu escrúpulo. Perante os agravos dessas boas consciências, o filofascista Chiappe, chefe da Polícia de Paris, proibiu mais exibições, alegando “razões de ordem pública.” Banimento que se manteria efetivo durante meio século. A blasfema insânia só podia ser visionada em projeções particulares ou em cinematecas. Comercialmente só estrearia em New York em 1980. Em Paris em 1981. A Portugal só chegaria no ano seguinte, numa sessão organizada pela Cinemateca Portuguesa de Lisboa.
Entretanto, as represálias dos eminentes poderes não se fizeram esperar. O Vaticano, antecipando a ira dedicada ao sacrílego Viridiana (1961), ameaçou excomungar o visconde, vincando sua cólera pela associação do Cristo ao Marquis de Sade.
Armado de uma fleuma imperturbável, o sádico D. Luis classificaria o pomo da discórdia como “um filme romântico em pleno frenesi surrealista”. Afinal, o agente provocador, neste experimento de “surrealismo sem rótulo”, se limitou a secundar os fundamentos do manifesto que preconizavam uma arte livre dos freios da razão, da moral(idade) burguesa e dos caducos conceitos estéticos, uma arte que denunciasse as hipocrisias sociais, políticas e religiosas.
Vendo-se (re)compensados do desconforto gerado pelo bom sucesso comercial de Le Chien, os padrinhos vieram para o forum manifestar solidariedade ao confrade, desagravando a afronta que caia sobre o diretor.
“Buñuel formulou uma hipótese sobre a revolução e o amor que toca
o mais profundo da natureza humana.”
Não dissimulando uma dorzinha de cotovelo, o cada vez mais enGalanado Dali segregaria um tributo com muito de dúbio e enfático. “Parece um filme americano!”
A singularidade de Buñuel
Em 1953, também em Paris, Ado Kyrou publicava o ensaio Le Surrealisme au Cinéma –na capa uma foto de Ray-, onde o pecúlio fílmica do aragonês tem direito ao destaque de um capítulo. .
No livro, Kyrou defende que, à exceção do de Buñuel, não existiu um cinema surrealista, propriamente dito, apesar de Marcel Duchamp e Ray terem igualmente assinado filmes experimentais.
A notável singularidade do cineasta assenta no fato de ter continuado a abrir a porta ao chamamento surrealista, mesmo após a mitigação do clamor dos preceitos propalados pela tertúlia. Até nos seus títulos de registro mais realista, Las Hurdes (1932) ou Los Olvidados.
Reverberações do automatismo psíquico, de modelos de expressão pautados pelo instintivo e pelo irracional, das sugestões oníricas do subconsciente, dos temas idiossincráticos (amor, revolta, audácia, iconoclastia) são captáveis na obra póstera, nomeadamente em Subida ao Cielo (1951), Él (1952), Viridiana, El Angel Exterminador (1962), Belle de Jour (1966) ou Le Fantôme de la Liberté (1974).
Aos 77 anos, teve ainda tesão para rubricar seu testamento artístico: Cet Obscur Objet du Désir (1977). Derradeira ascensão ao céu de sua cinearte, Cet Objet… é um balde d’água álgida atirado na cara dos que relutam em acreditar que todo “l’amour fou” se pode provocar repulsa e agrura, também pode suscitar deleite e fofoura. Uma navalha de dois gumes(Amor e Sexo) primorosamente afiados.
Conforme o próprio Buñuel resumiu, o filme conta a história da “impossível posse(ssão) do corpo de uma mulher”. Quase meio século depois, não será descabido lê-lo como uma espécie de sequela de L’Âge… Foi sob a sombra da reedição da danação que o “descodificaram” os que, em 16 de outubro de 1977, acionaram uma bomba no Ridgetheatre de San Francisco (EUA). No atentado, foram roubadas quatro bobines e inscritas nos muros pichações insultuosas do estilo “desta vez foste longe demais.” Uma das inscrições tinha a assinatura de Mickey Mouse.
Tão soezes reações provam que o escandaloso surrealista nunca regressou à sua Idade do Ouro, porque dela jamais se apartara.
Apenas na aparência exilado da fraternidade, ele nunca renegaria, até exalar seu último suspiro, esta ligação artística, cultural, política, existencial. No fim da jornada terrena, o cidadão reafirmaria que esta iniciação lhe revelou uma verdade insofismável: “Na vida há um sentido moral que o Homem não pode se dispensar de adotar.”
Herdeiro do venturoso legado do cinismo e do estoicismo helênicos, Luis Buñuel Portolés era, tal como Agostinho da Silva, licenciado em Liberdade e doutorado em Raiva. Felizmente que, para nosso comprazimento, não conseguiram inocular no perro aragonês a vacina capaz de aplacar sua indômita ferocidade.
NOTAS:
1- Entrevista ao Cahiers du Cinéma, nº 36, junho de 1954, reproduzida em A Política dos Autores, Editora Assírio & Alvim, Lisboa, 1976, p. 213.
2- Para respaldar esta assertiva será suficiente uma leitura da antologia Os Poemas de Luís Buñuel, organizada por José Francisco Aranda, com tradução e prefácio de Mário Cesariny, edição Assírio & Alvim, 1996, Lisboa.
3- Em sua autobiografia, Buñuel refere que foi concebido, em 1899, durante a viagem de núpcias de seus pais à capital francesa.
4- Os viscondes, financiadores do filme, concederam a Buñuel uma irrestrita liberdade de expressão. De bom grado aceitaram que o diretor recusasse a indicação de Igor Stravinsky para compor a trilha sonora.
Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, Brasil, num novembrino dia de Vênus, sob o signo de Escorpião. No ano em que Lygia Fagundes Telles publicava ‘Ciranda de Pedra’, seu romance inaugural.
Com diploma, licenciatura, em História Universal da Infâmia, sob a direcção de Jorge Luis Borges, tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema, frequentando, entre outras formações, os cursos ‘Cinema e Intervenção’ (na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto) e ‘Perspetivas Comparatistas sobre a Nova Vaga Francesa’ (na Alliance Française/Porto).
Editou e/ou publicou os livros ‘Em Busca da Musa Clio’ (2004), ‘Amor Città Aperta’ (2008), ‘O Céu sobre Berlin’ (2009), ‘Excitações Klimtorianas’ (2012), ‘O Apojo das Ninfas’ (2014), ‘Oito e demy’ (2015), ‘O Português do Cinemoda’ (2015), ‘Os Homens da Minha Vida’ (2017) e ‘Corpo Estranho’ (2021).