A História do Suicídio em 6.692 toques, com espaços | Antônio Torres
História do Suicídio – Vol. 1 – Variações Antigas e o Domínio do Cristianismo (2020), Alexandre H Reis. Brasil. Páginas Editora. Buobooks.
Comecemos com um filósofo que se celebrizou também como romancista e dramaturgo, autor da trilogia do absurdo, composta pelo romance O estrangeiro, o ensaio filosófico O mito de Sísifo, e a peça teatral Calígula. Nessa trilogia, assim como em boa parte de sua obra, ele faz um confronto desesperado entre a interrogação humana e o silêncio de um mundo opaco. Trata-se de um franco-argelino nascido em 1913 e falecido em 1960, três anos depois de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Ele foi, portanto, um dos maiores escritores do século 20, que chamou de “o século dos rancores”, o que, convenhamos, ainda não era tudo isso, se comparado com o que estamos vivendo agora. Para quem não está ligando o nome à pessoa, aqui está, com todas as letras: Albert Camus, o Monami da poeta Myrian Naves. É dele a epígrafe para esta nossa conversa:
“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois”.
Não é por acaso que o romancista que vos fala traz Albert Camus para uma interlocução com o autor dessa alentada História do suicídio. Primeiro: ambos são formados em filosofia. Camus, pela universidade de Argel, capital da Argélia, onde se graduou. Já o professor Alexandre Reis foi mais longe academicamente: fez graduação e mestrado nessa disciplina na UFMG e doutorado na UFGRS. Segundo: a proposta aqui é de um diálogo da filosofia com a literatura, puxado, naturalmente, pela baita história tão bem escrita pelo Dr. Alexandre Reis.
Li a sua História do Suicídio com grande interesse e aprendizado. É um tour-de-force homérico, o que pode ser traduzido como um gigantesco esforço de reportagem – como dizíamos no meu tempo de repórter, que resultou numa obra investigativa de fôlego, rica de informações – e ensinamentos, análises, reflexões. E é mais: ele, Alexandre Reis, nos abre os baús dos alfarrábios seculares, ou milenares, guardados na Academia de Platão, no Liceu aristotélico, no Jardim de Epicuro, na Cidade de Deus de Santo Agostinho etc. sem pose de luminar caído do olimpo na planície dos iletrados. Página a página, o que vemos é um autor dono de uma erudição assombrosa capaz de torná-la acessível ao mais comum dos mortais – nós, os seus leitores -, sendo até poucas as vezes que nos fará sentir a necessidade de ir ao dicionário, como deixa claro logo de cara:
Esta estrada que vamos juntos percorrer tem ziguezagues que, à primeira vista, confundem a direção. Muitas vezes, não sabemos se estamos falando de nós, ao ler em voz alta a escrita dos antigos; e, ao tomar estas vias da História do Suicídio, reconheceremos, se permanecermos fiéis à nossa probidade, que somos mais antigos do que os antigos. É que estas terras estrangeiras estão em nosso íntimo, como se compusessem o nosso próprio espírito”.
Nessa estrada, ele nos guiará em segurança pela travessia dos tempos de gregos e romanos, egípcios e hebreus, cristãos e guaranis, arawetês e tupinambás.
E nela vamos cruzando com figuras lendárias da história do suicídio – e para além dela -, descritas por Alexandre Reis como personagens de tragédias clássicas, a exemplo de Sócrates, Sêneca, Santa Apolônia, Empédocles – o que teria pulado na boca do vulcão Etna, na Sicília, na esperança de se tornar um Deus.
O Dr. Reis termina este que é o primeiro volume de uma história que terá continuidade em mais dois livros dizendo o seguinte: “Todas as nossas incursões pela história do suicídio, ou história geral de questões fundamentais para pensar e compreender o suicídio, devem desaguar no tempo presente”.
Por todas as suas páginas, este leitor aqui, egresso da cultura popular de um mundo arcaico governado pelo rigor das condenações ditadas pela ortodoxia cristã, onde o suicídio era chamado de tresloucado gesto, e o suicida impedido de ser velado numa igreja, eu, o leitor, vi-me diante de cenas dramáticas da história contemporânea ou mais ou menos próxima a ela. O capítulo intitulado Os poetas e o suicídio, por exemplo, me remeteu a um dos mais flamejantes deles, o russo Vladimir Maiakovski (1893-1930), que num longo e desesperado poema de amor, A flauta vertebrada, detona: “Talvez fosse melhor/ dar à minha vida/ o ponto final de um balaço”. Foi o que veio a fazer, deixando no ar especulações sobre a sua desilusão com a revolução bolchevique – da qual se tornara um entusiasta –, pelos impasses que ela criara para os artistas de vanguarda, somando-se a isso uma paixão pela mulher do seu editor. Chamava-se Lila. Lila Brik. Com o inferno no peito, Maiakovski lançou no coração dela torpedos alucinados: “Que Hoffman celestial te pôde inventar, maldita? ” Encurralado entre “o derradeiro amor do mundo, ardente como o rubor de um tísico”, e as suas decepções utópicas, achou que a única saída estava no cano de uma pistola. Na sua carta de despedida, escreveu: “… O barco do amor quebrou-se contra a vida cotidiana. (…) Eu morro. Não culpem disso a ninguém. E nada de falatórios. O defunto tinha horror a isso”.
Bem, poderia atravessar dias e noites recordando histórias que essa Histórias do Suicídio me trouxeram à memória. Para não me estender além da conta, fecho com mais um caso, envolvendo outro Vladimir.
No dia 27 de outubro de 1975, o corpo do jornalista Vlado Herzog era levado para ser enterrado como o de um suicida no Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo.
Segundo o judaísmo, a causa da morte previa que ele fosse sepultado às margens do local. Mas o rabino Henry Sobel, na época com 31 anos, se negou a aceitar a versão oficial de que Herzog tinha tirado a própria vida. O Exército afirmou que o jornalista havia cometido suicídio em sua cela, no dia 24, e divulgou uma foto na qual ele aparecia pendurado por um cinto amarrado ao pescoço.
Sobel tinha visto o corpo e as marcas de tortura – conforme relatou mais tarde. Ele decidiu, então, confrontar as autoridades, contrariar pressões internas da comunidade judaica, e enterrar o Vlado no centro do cemitério. O ato foi um claro desafio à versão oficial contada pela ditadura militar iniciada em 1964, e que durou 21 anos, nunca é demais lembrar.
Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo assassinato de Vladimir Herzog.
Por fim, mas não por último: entre os inumeráveis ensinamentos que a História do Suicídio, do professor doutor Alexandre Reis nos traz, destaco esta pérola, literariamente falando, captada à página 191:
“Quando somos, a morte não é. E quando ela chega, nós já não somos mais”.
Ô beleza! De texto.
Mosaico dos romances e contos do escritor brasileiro Antônio Torres no exterior.
* Palestra proferida por Antônio Torres em 13 de dezembro de 2021, transmitida ao vivo pelo canal do Youtube da Páginas Editora, no Brasil. Em Diálogo com Alexandre H Reis no EVENTO VIRTUAL “O tema do suicídio como estratégia ficcional: um diálogo entre os escritores Antônio Torres e Alexandre H. Reis ”. (Duração: 2:06:04)
Organização: Páginas Editora, Myrian Naves, Cantaria, artes e ofícios
O escritor brasileiro Antônio Torres (Bahia, 1940) é romancista, contista e cronista, autor de 17 livros, entre os quais se destaca a trilogia formada por “Essa Terra”, “O cachorro e o lobo” e “Pelo fundo da agulha”, publicada em Portugal pela Editora Teodolito. Sua obra tem conquistado inúmeros prêmios no Brasil e traduções em vários países. Membro da Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a cadeira fundada por Machado de Assis, Antônio Torres é também sócio correspondente lusófono da Academia de Ciências de Lisboa. https://www.antoniotorres.com.br/
Alexandre H. Reis, filósofo brasileiro, graduado e mestre em Filosofia pela UFMG e doutor pela UFRGS. Professor da UNIVAST, Universidade Federal do Vale do São Francisco, leciona disciplinas ligadas à filosofia. É autor dos livros Vita; Filosofia e Ética e Os Jardins da Academia e de diversos artigos em revistas científicas. Coordena, desde a fundação, a THANÁTOUS, liga acadêmica que estuda a morte e o suicídio. É pesquisador do Krisis, Laboratório de Antropologia, Filosofia e Política, e professor em dois programas de mestrado. Tem se ocupado de uma vasta pesquisa sobre a morte voluntária, analisando documentos antigos e atuais. Autor de Vita – breves, pensamentos sobre a vida e a morte (2007) e História do Suicídio – Vol. 1 – Variações Antigas e o Domínio do Cristianismo (2020).