Cultura

A fala colorida da salvação | João Rasteiro

“Como posso agora começar a falar-te?”

António Franco Alexandre

I

 

Lograsse eu ainda nesta tua fala
dizer «amo-te» e ser ouvido 
pelo ouvido humano da tua boca”
e esta bandeira rasgada em corpo 
amarelo, coração verde e olhos 
vermelhos que não detém o vento,
seria uma divina infusão perfeita,
o farol de Alexandria ateado na névoa. 

 

II

Agora, mal suporto a litura do peso
biográfico da palavra obscura
e umbilical, como um corpo voluto
em ruínas, imundo e corrompido
na pura metafisica da tua ausência
que alastra o sangue sobre o azul
de um abismo aberto no osso de Deus
pelas catacumbas de Kom el Shoqafa

  
                     

III

As palavras tornam-se puro chumbo
e desabam como os lobos abatidos
sob a melancolia visceral de tua voz,
sem mais verde sobre o qual apoiar
um coração, já não escuto o apego 
da tua fala e nesta precisa tibieza já não
ousarei sonhar ser salvo ou ferido
sob prantos alicerçados na boca do Nilo.
    
                   

IV

 

A liça das ruas da tua ausência
deveria talvez ter começado por aí,”
pelo turíbulo da cidade onde a língua
mais frágil que os céus e as liláceas
sibilações dos pássaros entoavam
um breve canto de adeus ao verde
coração em que solitário me fui perder
nas esfinges da Biblioteca de Alexandria.
    
                   

V

 

Às vezes sinto-me nu entre esta esfinge 
e a graça colorida dos teus olhos: 
sob o raiado sol da Villa dos Pássaros,
ama-me ou devora-me, pois, sem dolo 
e piedade, é que fendidas de abismos 
cores de meia-cor pairam no céu” 
e ferem, ó terrível fala colorida de carícias 
envolventes que elevas a vida e a agitas!

 

                                                                                 João Rasteiro
                                                                                   Setembro 2021 (inédito)

Fotografia de João Rasteiro. Autoria: Carl Blomberg.

João Rasteiro (Ameal – Coimbra, 1965). Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra, é Vogal de Direção do PEN Clube Português. Tem poemas publicados em revistas e antologias em Portugal, Brasil, Itália, França, Espanha, Finlândia, República Checa, Hungria, Moçambique, México, USA, Colômbia, Nicarágua e Chile. Obteve o Prémio Literário Manuel António Pina (2010). Publicou 18 livros (Portugal, Brasil e Espanha), que vão de, A Respiração das Vértebras, 2001 a, Levedura, 2019. Em 2009 e 2018 organizou antologias dedicadas à poesia portuguesa contemporânea, respetivamente: “Poesia Portuguesa Hoje” (Arquitrave, Colômbia) e “Aquí, en Esta Babilonia” (Amargord, Espanha). Em 2015 e 2020 integrou as antologias de contos “O País Invisível”, organizada pelo Centro de Estudos Mário Cláudio e ”Antologia de Contos Originais”, Edições Colibri. Em 2020 publicou o livro de contos Governadores de Orvalho, Húmus. Em 2017, o grupo ‘Os Controversos’ adaptou e levou à cena a peça ‘A rose is a rose’, a partir do livro “A rose is a rose is a rose et coetera” (Edições Sem Nome, 2017). Tem participação diversa (letras), em vários CDs de Fado (Canção) de Coimbra. Prepara-se para publicar a antologia OFÍCIO Poesia: 2000 -2020, Porto Editora, 2020. Vive e trabalha (Casa da Escrita/CMC) em Coimbra.

 

 

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