o que tens a dizer sobre o capitalismo?
acho que me vou deitar no chão a ver passar as formigas.
(e fui.)
fiquei quieta três horas, vinte e dois minutos e nove segundos.
foi muito revolucionário.
o tecto, mapa falante,
corzinha desbotada nas fronteiras,
mãos a escorrer, vermelho ocre, árvores cinza,
só luzes no google maps.
nenhum continente em forma de giesta,
preferia mapa estelar.
cai uma estrela na minha perna
o estilhaço com feição de fronteira.
primeiro as tarefas ou escrevo?
a pergunta, insubordinada, sempre ali
sempre ali.
a primeira tarefa é pensar o capitalismo deitada no chão da sala.
entram um homem, um cão e uma banana
uma mão estendida
um caixote, dois caixotes, cem caixotes à volta da praça
uma mulher com a cara rota
um ramo de rosas a um euro— um euro, senhora! —
uma boca com frio polar
entram fantasmas, todos fardados.
sala cheia de estados, nações e poeira.
que me deu para escrever um livro
intitulado
o mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas?
o mais difícil do capitalismo é pô-lo num verso.
o poema palavra prenhe
e eu a falar do cangalheiro.
morte é lugar-comum, fome é lugar-comum,
a diferença entre os sonhos e a minha conta bancária é lugar-comum,
miséria é exponencial, guerra cliché.
consumir está no ranking dos melhores verbos.
tudo se transforma num vasto exercício de retórica terminal
poesia efémera
banal
hiperbólica.
quieta. fica quieta.
aprende a ficar quieta.
aprende a ficar quieta e não palpitar.
aprende a ficar quieta e não ansiar.
aprende a ficar quieta e não calar o murmúrio.
aprende a não acelerar as nuvens.
qual heroína shoujo,
não te contamines com a pressa do planeta
tempo é partícula, não ponteiro.
repito o mantra à exaustão
no chão da sala um buraco só do desalinhamento dos chakras.
o que tenho a dizer:
a poética de um túnel de luzes pejado de drones é árida,
talvez começar por algum lado.
(“O que tens a dizer sobre o capitalismo?”, do livro O mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas (Editora Urutau, 1a ed. 2017, 2a ed. 2021)
CANTO DO DESEJO
quero estar daqui a dez anos
numa casa entre as árvores.
ainda existem abelhas
que distribuem as flores pacientemente
entre todas as aves.
um mamífero, uma taça de mel e sal.
oceanos cheios de peixes e livros
guiam as embarcações e as naves.
a última levou para Marte
o que restava de armas e ressentimento.
eu ainda acredito nas pessoas.
as dívidas foram pagas pelos bancos às gerações de dizimados.
quando tentaram incendiar as florestas,
os grandes rios enforcaram as divisas
uma a uma.
para troca
há sonhos
pesadelos
e a memória das tribos que tentaram matar.
araruna é um tipo de arara azul
ararapiri, outra arara
e araraquara, toca das araras, é dia, sol e luz.
todas existem no cocá de cada indígena.
por vezes voam e deixam o mundo para trás.
durante toda a noite
a mulher mutante
cozeu um bolo de milho sobre as brasas.
invocou as bruxas, as deusas e as imigrantes
e liberou finalmente a fruta e o leite.
o amor deixou de estar
nas mãos das más memórias.
não existem cadeias nem farmacêuticas. para que serviriam?
atravessámos a grande peste.
teremos aprendido algo.
cantar entre as paredes
revelará o persistente mergulho da cura
e os limites da transfusão do impedimento.
mesmo que hoje só ande cem metros
em redor de minha casa,
tenham fechado os jardins
e proibido os abraços,
este é o canto do desejo
e jamais se quebrará.
(“Canto do Desejo”, do livro Carta de Amor ao Pesadelo (Editora Urutau, 2023)
Judite Canha Fernandes, Funchal, 1971, é escritora e dramaturga. Publicou poesia, romance, novela, conto, e literatura infanto-juvenil. Entre vários outros prémios e menções especiais do júri, o livro de poesia o mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas foi semifinalista no Prémio Oceanos em 2018. O seu romance de estreia Um passo para sul foi Prémio Agustina Bessa Luís em 2018, foi nomeado para melhor livro de ficção narrativa em 2019 pela Sociedade Portuguesa de Autores, foi semifinalista do Prémio Oceanos em 2020 e faz parte do Plano Nacional de Leitura 2020-2027. O Mel sem abelhas, novela em fase de publicação, foi Prémio Literário Edmundo Bettencourt em 2024.
Cartas de um vulcão para o Mundo foi transformado em curta-metragem pelo realizador Gonçalo Tocha. A peça para a infância Queres fazer um barco comigo? está disponível na RTP-Play, dramatizada por Um Coletivo. A sua novela A Lista da Mercearia inspirou o filme “Pode separar-se uma artista do seu coração?” de Catarina Fernandes, realizado por Renata Pires-Sola.
Textos seus estiveram em cena na Casa da Música, Fábrica das Artes – Centro Cultural de Belém, A Comuna, Teatro Dona Maria II, Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, Teatro Municipal de Bragança, entre outros. Tem publicações em revistas literárias no Brasil, Itália, Espanha e Portugal. A sua obra é objeto de investigação em várias universidades.