Cultura

Crônica: Rincão das Flores | Lau Siqueira

Os tempos são difíceis. Nosso país vive um pesadelo de pele indefinida. Para suportar, muitas vezes, apelamos para a memória. Naturalmente vamos colhendo lembranças. Cientes do significado mais profundo da palavra tristeza, mesmo no disfarce. Afinal, a vida é carne crua. Fazemos nossas escolhas sempre que possível, mas nem sempre a vida permite. Viver é um verbo que pulsa e rasga uma estrada entre o passado e o futuro. Viver é um bosque com suas delícias e provações. Às vezes dói.

 

Vejo no perfil de alguns amigos a agonia de perder um ente querido e não poder velar o corpo por conta da ameaça real que é o Covid-19. Toda ausência é danosa. Todavia essa é uma ausência é cruel demais. A morte é sempre difícil, apesar de ser nossa única certeza. Todos vamos um dia. Nunca se sabe quando. Isso tudo me fez lembrar da morte do meu tio paterno caçula, o Zé Luiz. Era uma pessoa de pouquíssimas letras, mas de largos sorrisos e de uma amorosidade que marcou minha história. Veio de uma vida árida, mas era profundamente doce.

 

Seus dentes de ouro brilhavam quando nos víamos. Quando sabia que eu estava em Jaguarão, corria para lá. Uma alegria que sempre chegava repartida. Zé Luiz era mais um peão. Um farrapo de gente. Meus avós não tiveram terra. Eram posseiros nas bandas do Rincão das Flores, em São Lourenço do Sul, RS. A disputa pela terra era uma luta cotidiana. Meu tio foi ficando só quando os irmãos foram embora em busca da vida. Cuidou da minha vó até à morte. Viu os alambrados cercando sua carne, sua miséria. Até que um dia chegou sua vez. Era o último. Até meu pai já tinha ido.

 

Ninguém da família podia acompanhar o enterro e eu fui. Casualmente estava em Jaguarão visitando minha mãe. Trabalhava em Porto Alegre, numa joalheria centenária chamada Casa Masson. Então eu fui. Peguei o ônibus e algumas orientações. Desci na BR 116, depois de Pelotas. Pedi informações numa bodega de beira de estrada. Todo mundo sabia quem eu era. Fui identificado sem abrir a boca. Todos me conheciam. Estranhamente, sabiam até que eu iria. Tio Zé Luiz falava muito em mim. Senti uma pancada de amor em estado bruto. O minuano catou uma lágrima bem no fundo do olho. E depois secou. Tem lágrima que não chora.

 

Foi quando eu soube a forma como ele tinha morrido. Morreu afogado em um banhado de pouco mais de um palmo. Talvez tenha sido assassinado, diziam. Morava só, nos fundos de um galinheiro de um lugar bonito chamado Rincão das Flores. Era um homem vivendo a brutalidade da solidão. O velório não durou mais do que 15 minutos. No enterro, somente eu, o coveiro e o rapaz da funerária. Tudo muito frio. Inclusive o vento. Nenhuma lágrima descia, mas eu chorava como nunca.

 

Logo em seguida voltei para Br 116 onde peguei um ônibus para Porto Alegre. Não sabia o que estava sentindo. Não chorava. Não falava com ninguém. Mais de uma semana daquele jeito estranho e as pessoas, colegas de trabalho, percebiam minha angústia. Não consegui dizer o que estava acontecendo. Quase perdi o emprego por tanto silêncio. Nem eu sabia o que estava sentindo. Nunca havia experimentado tamanha tristeza. Nem mesmo na morte do meu pai, dois anos antes.

 

Foi quando descobri uma navalha cruel. Uma coisa que vai despedaçando a gente por dentro. Aos poucos vai arrancando o fígado, retalhando os pulmões. Até que o coração não escapa. Foi a segunda vez que morri. Já havia morrido um pouco com meu pai, no dia 3 de dezembro de 1977. Todavia meu pai morreu cercado de amor. Já essa morte me arrancou a pele. Aquele abandono cruel encerrando a jornada de uma pessoa tão doce, tão amorosa. Essa morte me ensinou pela primeira vez o sentido da palavra depressão. Nunca mais fui o mesmo.

 

Desde então me sinto profundamente humano. Aprendi ali, naquela bodega de beira de estrada, a ter noção de mim mesmo. Desinventei minhas vaidades. O impacto da minha porção despossuída me posicionou diante do mundo. Agora, ao me solidarizar com a dor alheia, lembro da forma dolorida como também morri naquela beira de estrada.

 

Lau Siqueira é gaúcho. Nasceu em 1957, em Jaguarão, na fronteira com o Uruguay. Em 1985 mudou-se ´para a Paraíba. Publicou dez livros de poemas. Participou de diversas antologias regionais, nacionais e internacionais. Atualmente escreve crônicas semanais para a revista Crônicas Cariocas, ensaios e resenhas para a revista Mallarmargens – literatura e arte. Possui inéditos um livro de crônicas e um de poemas.

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