Cultura

A identificação, por nacionalidade e função | José Manuel Simões

Foto de Claudia Raya na Unsplash

Não sabia exatamente ao que ia. Sentado numa quase poltrona, Mr. Lee, americano do Texas, diretor de uma companhia petrolífera americana no Brasil, viu que aquele jovem português lhe poderia resolver um problema: “tenho uma proposta para te fazer. Preciso de um Comissário de Bordo na plataforma 31 e tu és a pessoa certa para cumprir o cargo de Relações Públicas entre os americanos e os brasileiros e chefiar a cozinha e a limpeza. O salário é bastante bom. Trabalhas 15 dias e folgas outros 15. Quero que comeces depois de amanhã”. Mas…e o teatro? “Não posso esperar. Preciso da tua resposta agora”. Aceitou. 

 

Os colegas ficaram indignados. O Gilberto Alves, sempre delicado, bradou, falou alto, o Paulo César Barreto abanava a cabeça em desalento, o Luís Cláudio Lélis disse-lhe que nunca mais falaria com ele, que “não se deixa os colegas assim na mão”, o Jorginho de Paula olhou-o nos olhos, compreendeu, deram um abraço apertado e nunca mais se viram. 

 

Quando chegou à plataforma deparou-se com um cenário que o deixou deveras preocupado. Com as oscilações, batia de ambos os lados das paredes de ferro do corredor, o barulho dos motores parecia infiltrar-se no cérebro, rapidamente percebeu as privações a que estavam sujeitos. Não era só a limitação do espaço, nem o fato de não haver bebidas alcoólicas, nem mulheres, nem diversão. Encontrava-se, sobretudo nos americanos – muitos com passagem por cenários de guerra, a maioria muito gordos – uma espécie de demência, com alterações acentuadas de humor, algumas manifestações de violência e de mau caráter a virem ao de cima em situações de algum melindre. 

 

Um operário ficou com o braço esmagado entre dois tubos; um soldador deixou escapar um laivo de fogo e quase incendiava a plataforma; um eletricista caiu no mar, sendo salvo com fraturas várias por um grupo de pescadores que passava por perto, ao lado de um “rio” de petróleo que jorrava de cada vez que mudavam os tubos de extração. 

 

A identificação, por nacionalidade e função, dava-se pela cor do macacão e do capacete, amarelo-torrado para os brasileiros, verde para os americanos, os amarelos mão-de-obra, os verdes chefias. 

 

Instalou-se numa camarata com o William Leslie, um velho comissário das plataformas na sua última missão, que o batizou de Kadafi, por causa dos cabelos longos encaracolados, justificou. Tinha 65 anos e ia reformar-se. Que passaria, lá no Texas, a arbitrar lutas de wrestling, aliás, algo que, “tu, Kadafi, também devias fazer”, estimulou-o. Mas eu nem sei o que isso é, exclamou. “Não te preocupes pois esperto como pareces ser, rapidamente vais entender as regras. Basicamente, o wrestling é uma luta em que vale tudo – até projetar o outro para fora do ringue. Imagina que conseguem pegar em mais de 100 quilogramas no ar só com uma mão. É admirável a elasticidade destes lutadores. Porque é que me olhas com essa cara? Olha que o wrestling é um desporto sério, uma arte marcial onde se utilizam técnicas de agarrar, de arremesso e de derrubar, técnicas de pinos, de combate corpo-a-corpo e vários tipos de golpes. A ideia, como em todos os desportos, como em todas as nossas vidas, é ganhar sempre. Sabias que, se não contarmos com o atletismo, o wrestling é o desporto mais antigo de que há memória? Um dia ainda vais comigo para lá arbitrar as lutas”. Arbitrar? Que faria um árbitro num jogo em que vale tudo? Ele a arbitrar combates de porrada? Nem pensar!…”  

 

José Manuel Simões

 

 

Fotografia de José Manuel Simões

 

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos. 

Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
0
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura