Cultura

Rapsódia e ressonâncias no canto de Clara Nunes: Macunaíma e a dança das linguagens | Beatriz Helena Ramos Amaral

A voz ultrapassa a palavra. 

(Paul Zumthor)

 

 

A proposta desta reflexão é examinar a intersecção das linguagens musical, verbal, visual e gestual presentes na arte da extraordinária intérprete, pesquisadora e compositora brasileira Clara Nunes (1942-1983), focalizando, em especial, performances e gravações por ela realizadas a partir dos anos 1970, ocasião em que ocorre uma profunda transformação em seu repertório e em sua significativa trajetória estética. Após período de intensas pesquisas, ao gravar seu quarto álbum long-play, a intérprete volta-se completamente para a música brasileira autêntica, o folclore e a chamada música de raiz, além de pugnar pela valorização das três etnias que compõem o povo brasileiro, pelo respeito à diversidade de crenças, pela afirmação das religiões de matriz africana, pela intransigente defesa da igualdade e da liberdade.

 

A abordagem tem como base o entendimento de que somente a conjugação de saberes e o olhar de transdisciplinaridade se mostram capazes da compreensão do percurso de uma artista de tantas singularidades entrelaçadas, desde os sólidos alicerces de pesquisa que estruturam suas escolhas até à realização concreta das obras fonográficas e apresentações memoráveis, que encantaram o Brasil e o mundo, destacando-se extraordinários êxitos na Suécia, no Japão, na Alemanha e na França. 

 

Nesta ótica, selecionamos uma obra do repertório de Clara gravada por ela em 1975 – que permite amplo diálogo com a cultura brasileira e sobretudo com a literatura e com a obra de Mário de Andrade (1893-1945). Referimo-nos a Macunaíma, samba de autoria de David Corrêa e Norival Reis, tradução intersemiótica do romance-rapsódia do escritor modernista, obra eternizada na voz de Clara.

 

É visível o elo de afinidades entre os artistas. Na verdade, atuando de locus bastante diferenciados, tanto o escritor paulista quanto a cantora mineira mantiveram similitude de perspectivas e objetivaram realçar e preservar a verdadeira e autêntica identidade nacional, a música brasileira, o folclore, a cultura brasileira genuína, a chamada música “de raiz” – não a cultura ou a identidade idealizadas ou romantizadas e sim as verdadeiras e íntegras. Célebres são as expedições do escritor, professor e também musicólogo Mário de Andrade e sua produção de ensaísta, poeta, cronista e romancista tendentes ao reconhecimento e à expansão dos valores culturais brasileiros.  Esta é, também, a proposta da intérprete, pesquisadora e compositora Clara Nunes ao criar, para si, a partir dos anos 1970, uma trajetória fortemente inclinada para os mesmos valores, acrescendo-se o destaque para as três etnias formadoras do povo brasileiro, para as religiões de matriz africana e para o respeito à diversidade de crenças religiosas.

 

É possível vislumbrarmos uma sólida ponte pela qual trafegam as metas e as ideias dos dois artistas brasileiros, alicerçada por fortes laços de similitude. Podemos afirmar ser esta afinidade de ideários uma das principais razões pelas quais a interpretação que Clara dá ao samba-enredo Macunaíma, de David Corrêa e Norival Reis, baseado na obra literária homônima de Mário de Andrade, tem caráter estético extraordinário e integra o patrimônio cultural brasileiro. A propósito, relembra-se que, a partir de 1930, o samba passa a ser reconhecido como o gênero musical que simboliza a brasilidade.

 

As ilimitadas e superlativas qualidades vocais da intérprete, entre as quais se alinham a tessitura, o timbre, a precisão de articulação, a dosagem da emissão sonora, a dicção, o equilíbrio de sons agudos, médios e graves e a afinação perfeita compõem um raríssimo conjunto de características que evidenciam a inserção de Clara Nunes na categoria de intérprete delineada por Igor STRAVINSKY (1996), que, nas lições de sua Poética Musical, diferencia com percuciência o simples executante e o intérprete, realçando que o primeiro realiza a reprodução sonora da partitura, enquanto o intérprete, atuando com o elemento “ético mais do que estético”  tem um elevado grau de consciência, que resulta, “além da perfeição de sua transposição sonora, um amoroso cuidado – o que não significa, aberta ou sub-repticiamente uma recomposição.”  

 

A concepção de STRAVINSKY se mostra perfeita para o reconhecimento da qualidade de intérprete de Clara. E é neste diapasão que podemos vislumbrar o canto que eternizou obras como “Ijexá”, de Edil Pacheco, “Canto das Três Raças”, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, “Juízo Final”, de Nélson Cavaquinho, “Nação”, de João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, “Morena de Angola”, “Basta um dia”, “Apesar de você” e “Fado Tropical”, de Chico Buarque de Holanda, “Na linha do mar”, de Paulinho da Viola, entre tantas outras.

 

Para reavivar a história e desenhar a devida contextualização, fazemos um brevíssimo retrospecto. Nascida no Distrito de Cedro (atual cidade de Caetanópolis), no município de Paraopeba, Minas Gerais, em 1942, Clara mudou-se na adolescência, para Belo Horizonte, com dois de seus irmãos, em busca de melhores oportunidades de trabalho. Começou a cantar no coro da Igreja. Sagrou-se vitoriosa no Concurso “A Voz de Ouro ABC”, em seu estado. Contratada pela Rádio Inconfidência, também comandou programa na TV Itacolomi. Multiplicaram-se convites para apresentações e Clara foi eleita, por três anos consecutivos, a melhor cantora de Minas Gerais. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, em fins de 1965, assinou contrato com a gravadora Odeon (atual EMI-Odeon), iniciando sua obra fonográfica. Os primeiros álbuns continham músicas predominantemente românticas, por exclusiva decisão da gravadora, com vistas à adequação ao mercado. Jovem, recém-chegada ao Rio de Janeiro, a cantora não mantinha, naquela época, controle sobre o próprio repertório, como ocorria com artistas iniciantes em geral. Acresce, neste ponto, um segundo fator, bem assinalado pela historiadora Sílvia Brügger (2013), qual seja, o fato de Clara, àquela altura, dominar com segurança o repertório romântico com a ampla experiência adquirida nos anos 1950, em razão do predomínio deste estilo na programação de rádio, que vivia período de apogeu. Desta forma, seus primeiros discos não atingiram as vendagens esperadas, inobstante a voz extraordinária da intérprete. Uma das obras do segundo álbum, porém, se destacou: “Você passa e eu acho graça”, samba de autoria de Ataulfo Alves e de Carlos Imperial. Gravada por Clara em julho de 1968, a música integrou álbum long-play homônimo e também fez parte compactos-simples lançados no mesmo ano. Foi seu primeiro sucesso radiofônico, com vendagem expressiva.

 

Este fato sinalizou para Clara sua afinidade com o samba. Restava nítido que a música brasileira autêntica, em sua voz, instaurava uma trilha especial, começando a construir um espaço próprio, ensejando o reencontro com significativas memórias de infância: os cantos populares, as folias de reis lideradas por seu pai, violonista, Manuel Araújo. A partir deste ponto, a cantora decide construir uma trajetória voltada para a música brasileira genuína e para o folclore. Seu percurso estético se torna único, diferente dos movimentos musicais de destaque, na ocasião, a bossa-nova, a jovem guarda e o movimento do tropicalismo.

 

É possível vislumbrar, neste ponto de virada, a existência do erro a que se refere Cecília SALLES (2006, p.132-133), ao focalizar, na Teoria dos Processos de Criação e, particularmente, no livro “Redes de criação”, a questão do erro e do acaso. Sustenta a ensaísta que, “para muitos artistas, o erro, ao ser avaliado, é recebido como um acaso criador que leva à descoberta.”  Na hipótese, a incipiente recepção dos primeiros trabalhos conduziu os movimentos de Clara Nunes para diferentes caminhos.     

              

A nova rota tornou-se definitiva para a cantora e se fez núcleo de toda a produção que adviria, depois, ao longo dos anos, inobstante a excepcional versatilidade da intérprete ter sempre ampliado o leque de seu repertório. E, integrando-se à MPB, sem abandonar a música de raiz, desenvolveu carreira das mais significativas na história da música brasileira, com excepcionais vendagens de discos, além de muitas dezenas de premiações, entre as quais o prestigiado Troféu Roquette Pinto, que lhe foi outorgado como a Personalidade Musical do ano de 1980.

 

Clara tornou-se o agente criativo de sua arte e de sua obra. Passou a definir o repertório, indicou os músicos e os produtores de seus discos, primeiramente o radialista Adelzon Alves, que produziu seus álbuns de 1971 a 1974 e, a partir de 1976, o poeta e compositor Paulo César Pinheiro, que produziu todos os seus álbuns até 1983. Com o primeiro, a cantora desenvolveu um projeto amplo, incluindo a criação de uma imagem “áudio e visual” com indumentária especificamente voltada para a cultura popular e para a religiosidade de matriz africana, composta por vestidos brancos, geralmente rendados, e, entre os acessórios, colares de contas e guias, pulseiras. Com o segundo, mantendo a proposta anterior, expandiu e consolidou com raro talento, as fronteiras de seu repertório para outros gêneros musicais brasileiros. São clássicas as suas interpretações de obras de Vinícius de Moraes, Toquinho, Chico Buarque, Luís Bonfá, Dolores Duran, Tom Jobim, João Bosco, Caetano Veloso, César Costa Filho, Sivuca, Aldir Blanc.

 

Há que se frisar que o coerente projeto estético da intérprete solidificou-se, passou a se revestir de enorme teor de poeticidade. A partir de 1970, o canto se alterou, despindo-se das impostações características das interpretações românticas, para assumir o novo repertório, mantendo a potência e a beleza. Importante assinalar a redução do vibrato, que somente se manteve na interpretação de obras de caráter lírico. Clara construiu, portanto, parâmetros perfeitamente apropriados para o samba e para os demais gêneros de música de raiz (coco, ciranda, frevo, baião, batuque, modinha), que optou por difundir. Seu engenho a conduzia por rumos de mimetismo: passava a cantar e a significar, ela-própria com sua presença-corpo-trajes-movimentação-dança, a música que cantava.                                   

 

As linguagens vocal e visual da intérprete atingiram elevado – e sempre delicado – grau de precisão. Uniram-se em plena interação e ocorreu um imbricamento de ambas com a linguagem corpórea e gestual desenvolvida por Clara, cujo empenho, neste aspecto, também se traduz pelo fato de, por cerca de cinco anos, ter estudado dança de origem africana com a bailarina, professora e coreógrafa Mercedes Batista, que pertencia ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro e teve papel histórico fundamental também por ser criadora do balé afro-brasileiro. Este aprendizado ensejou, entre várias consequências, o refinamento de toda a linguagem da gestualidade da intérprete. Cada um de seus gestos manuais tinha uma razão de ser, um componente simbólico, entranhado e, ao mesmo tempo, esculpido nas dobras da história e da arte.

 

O linguista e crítico literário Paul Zumthor (1983) reconhece que “a oralidade não se reduz à ação da voz” e ressalta a presença e a expansão do corpo, cujos movimentos se tornam parte integrante de uma poética. Afirma o que “nenhum gesto é pontual, sempre traça um percurso, que é também duração.” Em artes que se desenvolvem no tempo e no espaço, como a música e a dança, o resultado estético transpõe limites e direciona os ouvintes e espectadores para uma espécie de portal sinestésico. A cada nova obra interpretada, num sopro de evidente atemporalidade e lucidez, Clara cria instâncias inauditas, com o bem articulado conjunto de linguagens entretecidas em seu projeto.

 

Concomitantemente com as aulas de dança, ocorreu a permanente pesquisa de Clara dos ritmos musicais brasileiros, de todas as regiões do país e suas visitas aos redutos de samba e de outros gêneros populares. Era comum ouvi-la se referir, em entrevistas, ao extenso levantamento de centenas de ritmos diferentes realizado por César Guerra-Peixe (1914-1993), compositor, maestro e grande pesquisador da música brasileira, que, por sua vez, embasou-se nas pesquisas de Rossini Camargo Guarnieri (1907-1993), também maestro, compositor e professor de trajetória relevante na cultura. Neste polifônico material Clara extraiu peças musicais a que deu o mais intenso de sua vibração.

 

O reconhecimento da crítica alcançou elevados patamares, também à vista de dois antológicos espetáculos dos quais Clara participou: “Poeta, moça e violão”, ao lado de Toquinho e Vinícius de Moraes, em 1973/1974, e “Brasileiro Profissão Esperança”, de Paulo Pontes, ao lado do ator Paulo Gracindo, em 1974/1975, com direção de Bibi Ferreira, obras de Antônio Maria e de Dolores Duran. Ambos tiveram longa duração, enorme público e se converteram em discos excepcionais. Neles, Clara interpretou repertório amplo, incluindo samba-canção e bossa-nova, exibindo versatilidade desmedida. 

 

Em 1975, no Carnaval, no Rio de Janeiro, Clara apresentou Macunaíma, herói de nossa gente, samba-enredo da tradicional G. R. E. S. Portela, escola com a qual manteve, a partir de 1970 e por toda a vida, estreitos e mútuos laços de afeto e respeito.

 

Entre as reflexões de Mário de Andrade acerca da identidade cultural brasileira, relembramos: “Faz muitos anos que, escutando amorosamente o despontar da consciência nacional, cheguei à conclusão de que se esta alguma vez se manifestou com eficiência na arte, unicamente o fez pela música” (Música, doce música, 1934). Mais recentemente, este pensamento se renova, na apreciação crítica de Arthur NESTROVSKI (2007), mestre e músico que, na apresentação do livro Lendo música, por ele coordenado, reafirmando o grande destaque da canção popular na cultura brasileira, escreve: “O mínimo que se pode dizer é que a canção é um dos meios através dos quais o país vem inventar e entender a si mesmo.” As ensaístas e pesquisadoras Lília SCHWARCZ e Heloísa STARLING (2015) assinalam: “Durante a década de 1930, a canção popular firmou-se de vez, como o traço social mais evidente do Brasil moderno. As composições deste período solidificaram a linguagem autônoma do samba, foram buscar nesse gênero musical certa raiz própria distintiva de ser brasileiro.”

 

“Macunaíma, herói de nossa gente”, samba de autoria de Corrêa e Reis traduz semioticamente o romance-rapsódia “Macunaíma” (1928), de Mário de Andrade. Segundo esclarece Júlio Medaglia (2008, p. 319), “rapsódia é uma composição de formas livres, geralmente baseada em melodias folclóricas”. Está relacionada com os improvisos e com os rapsodos. Este clima – de transmutação  – está presente no caleidoscópio de peripécias do enredo que decorre de modo vertiginoso e surreal.

 

No romance “Macunaíma”, classificado pelo ensaísta e crítico literário Haroldo de CAMPOS (1973) como uma superfábula, o conteúdo folclórico, mítico e indígena é recriado por Mário de Andrade após pesquisas, viagens e expedições, depois de reflexões que se entrelaçam com a leitura de obras do etnólogo alemão Theodor KOCH-GRÜNBERG (1872-1935) sobre povos indígenas da região norte do Brasil, na fronteira com a Venezuela.  Desta mescla de pesquisas e leituras, brotou Macunaíma. O fato de o romance ter sido publicado em 1928, na primeira fase do Modernismo brasileiro (1922-1930), diz muito sobre a intenção do autor, comum aos escritores do período, de dar relevo aos elementos culturais autênticos, pugnar pela identidade nacional real – não idealizada – e construir crítica ética, política e social. A trama se desenvolve de modo veloz, voraz, vibrante, eufórico. Diferentemente do nacionalismo de tendências ufanistas do romantismo, a literatura modernista retrata a realidade e se entrelaça esteticamente com as balizas dos movimentos internacionais de vanguarda do início do século XX, em especial o dadaísmo, o futurismo e o cubismo.  

 

De acordo com José Miguel WISNIK (2004, p.136), Mário de Andrade “lança no Macunaíma  o  imaginário  submerso  do mundo indígena-rural como dado emergente no panorama da cidade, detonando um confronto vivo, polifônico”. 

 

As características de tonalidade da obra e seu enredo são transpostas com habilidade pela dupla de compositores (Corrêa-Reis). Macunaíma, herói de nossa gente é o samba-enredo da tradicional G. R. Escola de Samba Portela, conforme letra a seguir transcrita, premiada naquele ano com o Estandarte de Ouro.

 

Macunaíma 

Portela apresenta  / Do folclore tradições  / Milagres do sertão à mata virgem 

Assombrada com mil tentações /  Cy, a rainha mãe do mato / Macunaíma fascinou

Ao luar se fez poema / Mas ao filho encarnado / Toda maldição legou 

Macunaíma, índio branco catimbeiro  / Negro, sonso, feiticeiro / Mata a cobra e dá um nó

Cy em forma de estrela / A Macunaíma dá / Um talismã que ele perde e sai a vagar 

Ora encanta /  Canta o uirapuru e encanta / Liberta a mágoa do seu triste coração 

Negrinho do pastoreio foi a sua salvação / E derrotando o gigante  /  

Era uma vez Piaimã  / Macunaíma volta com o muiraquitã

Marupiara na luta e no amor / Quando para sempre sua pedra o monstro levou

Nosso herói assim cantou: /  

Vou-me embora, vou-me embora / Eu aqui volto mais não 

Vou morar no infinito e virar constelação (refrão)

 

A letra fala por si:  estonteante beleza, labirinto de cores e texturas por onde se movem os personagens Macunaíma, Cy e o gigante Piaimã. Ritmo forte, alegre e bem marcado de samba-enredo, repleto de síncopes e outros deslocamentos de natureza rítmica. Em amplo verbete, consignam Nei LOPES e Luiz Antônio SIMAS (2020, p.257-261) que o samba de enredo é “Modalidade de samba que consiste em letra e melodia criada a partir do resumo do tema escolhido como enredo de uma escola de samba. Os primeiros sambas cantados pelas escolas em suas apresentações carnavalescas eram de livre criação: falavam do meio ambiente, do próprio samba, da realidade dos sambistas. Com a instituição das disputas entre as escolas, por meio dos concursos, na década de 1930 […] passaram a narrar episódios e exaltar personagens da história. […]  Nascia, aí, o subgênero consagrado sob a denominação samba de enredo, que se fixava e se difundia sob forte influência do estilo-exaltação, surgido em 1939”.

 

O samba-enredo “Macunaíma, herói de nossa gente” destaca pontos culminantes da história do protagonista do livro de Mário de Andrade, que se desenrola também como crítica política, embora o aspecto estético seja predominante, fundamental, consoante ocorre em obras de imensa grandeza literária.  As significativas inovações da linguagem e a intensa movimentação da história se harmonizam com o teor de vibração do carnaval.

 

A interpretação de Clara capta plenamente a leveza e a liberdade da linguagem da obra, realçando suas transmutações, sem deixar de oferecer as bases do pensamento que orienta o romance. Na exuberância de sua potência vocal, a intérprete ajusta com equilíbrio a intensidade do canto e a luminosidade da história e parece planar quando canta, completando a performance com a dança que se estrutura num paradoxo de força e delicadeza. É o que vemos no vídeo que constitui a faixa 4 do DVD “Clara Nunes – os musicais do Fantástico das décadas de 70 e 80”, lançado em 2008 (Globomarcas). E é o que podemos ver em todas as performances de Macunaíma, herói de nossa gente apresentadas por Clara nos vários vídeos disponíveis nas plataformas da internet. Em seu álbum musical de 1981, Clara reinsere a gravação de Macunaíma, sendo de se registrar que este mesmo disco contém o samba-exaltação Portela na Avenida, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, composto por encomenda da própria Clara, com o intuito de homenagear sua escola do coração. Fios de linha que se unem.

 

A propósito do samba-enredo Macunaíma, escreve o crítico literário Silviano SANTIAGO (1989, p.136): “ Em 1975,  a  Escola de Samba Portela, do Rio de Janeiro, desfila pela passarela da Marquês de Sapucaí as alegorias de Macunaíma acompanhadas pelo samba-enredo de igual título”. SANTIAGO também relembra a palavra de Carlos Drummond de Andrade em crônica da época: “Olhe que esse tipo de consagração é o máximo. Vale mais do que a discutível coroa das academias. […]. É o reconhecimento anônimo, o diploma de perenidade de suas criações. Quando a incorporação pública de tais valores se produz, é lícito afirmar que alguma coisa se acrescentou à cultura popular, pelo encontro afortunado de ‘duas linhas de criação’.”  Refere-se SANTIAGO à crônica intitulada “Macunaíma, Pluft, etc. “, de Carlos DRUMMOND de Andrade, publicada na edição de 20 de fevereiro de 1975 do Jornal do Brasil, em seu Caderno B.

 

Na bem construída letra do samba-enredo, está formulado o convite para que o público não só ouça atentamente a história do herói sem-caráter Macunaíma, mas embarque na viagem e dance com a reviravolta e com as peripécias narradas/desfiladas em estilo caleidoscópico, em meio à profusão de cores, sons e encantamento. A presença dos mitos e lendas brasileiras é fortemente retratada. O movimento de ir “morar no infinito e virar constelação”, núcleo do refrão, também se transmuta em convite para os ouvintes. É o momento em que Macunaíma desiste de tentar recuperar a sua pedra, seu talismã, após sucessivos insucessos e decide viver com Cy, seu amor – que já é estrela e habita o ambiente galáctico. 

 

A voz de Clara Nunes direciona e amplifica o convite e, na atmosfera do carnaval, confere-lhe verdade e dignidade. Num fantástico mimetismo, a intérprete cria e recria, com as potencialidades do seu canto, matizes do universo fantástico gerado pela melodia e pelo ritmo. O encantamento defronta-se com a constatação da realidade do herói sem nenhum caráter, que, muitas vezes, quando instado a falar, somente diz: “Ai, que preguiça!”

 

No desfile da Portela, Clara interpreta Macunaíma em parceria com Silvinho. Está com eles um dos autores do samba-enredo, David Corrêa, além do consagrado compositor portelense Candeia. Clara e Silvinho puxam na avenida o samba-enredo da tradicional escola de samba e a atuação da cantora é muito elogiada, sobretudo pela crítica. A Portela fica entre as cinco melhores classificadas da disputa. 

 

No DVD Clara Nunes, lançado em 2008, que reúne vinte e um clips dos musicais gravados pela intérprete nos anos 1970 e 1980, a quarta faixa é Macunaíma, que, aliás, como já dissemos, também faz parte do álbum CLARA, de 1981 (Odeon, atual EMI-Odeon). Podemos ver no clip e também em vídeos disponíveis no YouTube a performance de Clara, que apresenta algumas diferenças conforme o espaço físico e a possibilidade de maior ou menor movimentação. Em um dos vídeos, com imagem em preto e branco, a cantora está cercada por seu conjunto de percussão e cria movimentos, linguagem gestual e rodopios com amplitude muito maior do que no desfile da Avenida Marquês de Sapucaí, naturalmente, pois a a apresentação de Carnaval está condicionada por circunstâncias especiais de tempo e espaço e nas quais a potência do canto, o ataque das frases melódicas e a precisão rítmica são os elementos a receber atenção preponderante, no diálogo com os instrumentos da escola de samba e com os três mil e quinhentos integrantes da escola que participaram do desfile, tudo devendo ser entrosado com os demais itens avaliados, dada a competição entre as várias agremiações. Além disso, no desfile, Clara se apresenta em dueto com Silvinho. Diferente será, naturalmente, a interpretação da cantora em clips posteriores, em que, cantando sozinha, pode expandir a linguagem gestual, em decorrência de variação de espaço físico. A intérprete tece as repetições do refrão num progressivo acréscimo de vibração. Clara adensa a narrativa e a transforma em dança e voo para o infinito. 

 

A roupa de Clara, criada nas cores da Escola de Samba Portela, azul e branco, retratam o céu e o mar, bem como os corpos celestes. As grandes estrelas aplicadas sobre o vestido e também sobre o arranjo feito para a cabeça da intérprete possibilitam que neles se vislumbre o vínculo afetivo que nasce entre o protagonista Macunaíma e Cy, que se transmuta em estrela.

 

Como bem explícita a letra do samba-enredo: “Cy, em forma de estrela / A  Macunaíma dá um talismã /  Que ele perde e sai a vagar”. E não é somente este fragmento que vemos refletido na cintilância da roupa da cantora. O próprio refrão – de ritmo ainda mais cadenciado e com letra que sintetiza os sentimentos do protagonista – está presente e inserido no corpo da intérprete. Ei-lo:

 

                   “Vou-me embora, vou-me embora /  Eu aqui volto mais não 

                      Vou morar no infinito /   E virar constelação”

 

A qualidade do samba-enredo e a performance de Clara dão à Portela um de seus mais belos desfiles da história. A atuação da intérprete e agente de criação que, naquela época, atingia o auge de sua trajetória, é reconhecida por revistas semanais e jornais.

 

Já tendo discorrido sobre os aspectos de letra/linguagem, música e visualidade nesta performance, completamos nossa reflexão acerca da interação de todos estes aspectos com a observação a respeito da gestualidade da intérprete. É relevante notar que, mesmo em se tratando de um obra composta especialmente para ser samba-enredo e envolver toda uma grande comunidade no desfile – o que, por si só, limitaria o tipo de movimentação de qualquer intérprete  – no caso de Clara, a ação criativa se mantém intensa e desencadeia, além dos gestos das mãos, movimentos de braços, desenhos coreográficos e os rodopios perfeitos, que constituem uma das marcas de sua movimentação. Rodopios que, naturalmente, se identificam com giros existentes nos rituais das religiões de matriz africana, candomblé e umbanda, aprendidos pela cantora mas, de qualquer forma, os rodopios sempre foram inseridos pela intérprete em momentos especiais de cada música apresentada. Ao cantar sorrindo, ilumina de alegria e irreverência a história do herói e anti-herói brasileiro construída por Mário de Andrade e semioticamente traduzida para a obra musical de Norival Reis e David Corrêa.

 

Relevante acrescentar, ainda, que a composição nasce após a realização e exibição do filme “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, que é de 1969, integra o Cinema Novo e reúne no elenco Grande Otelo, Paulo José, Dina Sfat, Jardel Filho, Milton Gonçalves, Rodolfo Arena, entre outros. A tradução intersemiótica  – do livro, o romance-rapsódia de Mário de Andrade para o filme de Joaquim Pedro – certamente influenciou a criação do samba-enredo de autoria de Norival Reis e David Corrêa.

 

A mitologia indígena, largamente explorada pelo romancista em sua obra, com exuberância na linguagem, foi transportada com êxito para as telas sob a ótica do Cinema Novo e não é exagero dizer que o filme também abriu novas portas para a apreensão e compreensão do romance, não sendo despiciendo relembrar que somente a partir dos anos 1950, portanto, mais de duas décadas após o lançamento, a crítica principia o reconhecimento de “Macunaíma” como uma das principais obras não só do Modernismo como também da história da literatura brasileira. Aliás, impõe-se registrar que o grau de ousadia e inventividade de Mário de Andrade é tão intenso nesta obra que ensejou uma assimilação lenta, por parte da crítica. Somente em 1937, nove anos depois de sua publicação, foi lançada a segunda edição do livro.  Evidentemente, portanto, crítica e filme são alicerces a embasar a construção do samba-enredo magnificamente interpretado por Clara Nunes.

 

As linguagens se entrelaçam na performance da intérprete, cada qual sublinhando e reforçando a outra, todas reafirmando, com excelência, o potencial criativo de Clara e sua efetiva entrega à música autenticamente brasileira.

 

O relevante tema da ressignificação da identidade se insere na trajetória da intérprete, sempre muito ativa em valorizar a cultura popular, a música autêntica e celebrar a brasilidade. Na interpretação de Clara, existe a luz do mimetismo e uma grande entrega. Clara se transforma ela própria – no canto que entoa.

 

É a força de sua voz que realiza o ato performático de grandeza artística, revestido de enorme sensação de tactilidade.  Mas é no diálogo entre todas as linguagens que a intérprete – no sentido dado por STRAVINSKY – cria sua obra, inserindo-se ela própria, em suas vestes e em seu corpo em movimento.

 

Clara notabilizou-se por sua potencialidade vocal de ilimitados recursos, beleza timbrística, alcance da tessitura, pleno equilíbrio entre sons agudos, médios e graves, afinação perfeita, precisão na articulação, além de sua opção por valorizar a música de raiz, as centenas de ritmos de todo o país, as três etnias que compõem o povo brasileiro, e pugnar pela diversidade e pela tolerância religiosa e pela afirmação da cultura africana e afro-brasileira, que pesquisou por toda sua vida. Notabilizou-se também, evidentemente, pela ressonância entre as linguagens, entrelaçadas de forma inventiva, escrevendo seu nome na história da cultura brasileira. Para entoar o Brasil e morar em todos os infinitos.

 

 

Referências

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DEALTRY, Giovanna.  Clara Nunes Guerreira – o livro do disco. Rio de Janeiro: Cobogó, 2018

 

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KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. Porto Alegre:  Movimento, 1979

 

MACHADO, Regina. A voz na canção popular brasileira.  CotiaSP:   Ateliê Editorial, 2011

 

NESTROVSKI, Arthur. Lendo música: 10 ensaios sobre 10 canções.  São Paulo: Publifolha, 2007

 

PINHEIRO , Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010

 

SALLES, Cecília Almeida. Redes de Criação  –  Construção da Obra de Arte. Vinhedo, SP:  Horizonte, 

 

SQUEFF, Enio; WISNIK, José Miguel. Música  – o nacional e o popular na cultura brasileira.  São Paulo: Brasiliense, 2004

 

STRAVINSKY, Igor. Poética Musical. Tradução de Luiz Paulo Horta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996

 

SCHWARCS, Lília M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015

 

VALENTE, Heloísa de Araújo Duarte.  Os cantos da voz  – entre o ruído e o silêncio.  São Paulo: Annablume, 1999

 

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CLARA ESTRELA. Documentário de Susanna Lira e Rodrigo Alzuguir.  …….. minutos, 2017

 

CLARA MESTIÇA. Documentário de Diego Alexandre, Instituto Clara Nunes. 26’21, 2014  – https://youtu.be/53zr46oHseE

 

NUNES, Clara. Você passa e eu acho graça. Álbum musical long-play, Rio de Janeiro: Odeon, 1968.     Faixa 7B-305

 

VÍDEO MEMÓRIA EBC. Clara Nunes canta o Canto das Três Raças.  https://memoria.ebc.com.br/cultura/galeria/videos/2013/04/clara-nunes-canta-o-canto-das-tres-racas

 

 

 

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