Cultura

Histórias de poeta | André Gardel

Como todos sabem, Vinicius, além de poeta e compositor de música popular, foi funcionário do Itamaraty, exercendo diversos cargos diplomáticos no exterior no período de 1946 até 1969, ano em que foi exonerado. Este último fato, na verdade, despertou-lhe mais alegria do que decepção, pois permitiu que, enfim, se dedicasse inteiramente à sua carreira artística. Contudo, a experiência de ter sido representante do país em lugares como Paris, Los Angeles, Montevidéu propiciou ao poeta uma vivência internacional riquíssima, que veio a se mesclar com o seu carioquismo de raiz, jamais abandonado, e ao seu amor modernista tardio pelo Brasil. 

 

O mergulho de Vinicius na vida e no mundo – após uma primeira fase de sua produção norteada por um pensamento extremamente metafísico – se consolida com a viagem de “turista aprendiz” da brasilidade, que realizou pelo Nordeste em 1942, acompanhando o escritor americano Waldo Frank. A partir dessa mudança, forma-se em definitivo o espírito criativo, a um só tempo cosmopolita e provinciano, local e global do, antes de tudo, grande poeta Vinicius de Moraes. E foi da ampla gama de vivências de um autor que desejou intensamente manter “a casa sempre aberta”, que colhemos algumas de suas histórias de poeta.

 

Um carioca em Londres

 

Vinicius foi o primeiro brasileiro agraciado com uma bolsa para estudar língua e literatura inglesas em Oxford, no Magdalen College, concedida pelo Conselho Britânico em 1938. Então com 24 anos, o poeta parte de navio para Londres, em agosto do mesmo ano, com a cara e a coragem, cheio de sonhos e expectativas, desejos e ambições. No artigo Por que amo a Inglaterra, publicado em abril de 1959, na revista Senhor, nos conta, com humor e elegância, as múltiplas experiências e choques culturais que vivenciou, inicialmente em Londres e, depois, dentro dos portões da arquifamosa universidade, que vem formando, há séculos, grandes literatos e homens públicos. 

 

Imaginem Vinicius, rapaz praiano carioca, criado na Gávea, Botafogo e Ilha do Governador, recém formado em direito, cheio de veleidades poéticas esotéricas e metafísicas, deitado na cama de um quarto de subsolo de pensão londrina, após ter se perdido num fog noturno cerrado nas ruas, ouvindo o som dos aviões de caça ingleses em ronda pelos céus, de sobreaviso pela recente notícia de que a cidade seria bombardeada pelos alemães. Mesmo que, àquela noite, nenhum ataque inimigo tivesse ocorrido, a fantasia do poeta pôs-se a trabalhar e, em silêncio e à escuta, manteve-se atento “ao silvo eventual da primeira bomba ou ao estilhaçar da primeira explosão”. 

 

Possuído de espírito heróico, decidiu não seguir direto para Oxford, conforme o bilhete recebido do Conselho Britânico exigia, passando a noite em devaneios idealistas, que incluía o desejo de “não abandonar Londres às bombas alemãs”, pois seria “uma covardia eu desertar”, não estar presente à defesa da “cidade que tinha mãos para proteger minha vida, cuidados maternos para com a minha inexperiência…” No final das contas, Vinicius acaba por dormir, logo depois partindo para viver em Oxford as suas aventuras estudantis.

 

Vinicius, Carmem Miranda, Ava Gardner

 

Aventuras que não duram muito, pois, em fins de 1939, devido à eclosão da Guerra, regressa ao Brasil. Em 1946, em outra experiência internacional, Vinicius parte para Los Angeles, na condição de vice-cônsul, a fim de exercer seu primeiro posto diplomático. Já mais maduro como homem e escritor, começa a realizar a grande guinada na sua poesia, cada vez menos metafísica e mais cotidiana, mergulhando seu verso definitivamente na vida – sem, contudo, jamais perder o esmero e o requinte formal -, com o lançamento do livro Poemas, sonetos e baladas. Permanece por cinco anos na Califórnia, tempo suficiente para viver inúmeras histórias e consolidar belas amizades, como as que firmou com Orson Welles e Carmem Miranda – que chamava Vinicius carinhosamente de “meu vesuviozinho”. 

 

Com o autor de Cidadão Kane já travara contato, na condição de crítico de cinema, quando o americano esteve no Rio, em 1942, para as filmagens do inacabado documentário Tudo é verdade; e sua estada em Los Angeles serviu para que estudasse cinema com Welles. Mas foi graças à amizade estabelecida com a nossa Pequena Notável que, em novembro de 1946, vivencia um mitológico encontro com uma das principais divas de Hollywood – então em início de carreira -, num final de noite povoado de estrelas, socialites, músicos, megaempresários e afins na casa de um ricaço em Beverly Hills. Sabemos da história por meio da deliciosa crônica, de título de comédia shakespeareana, A bela ninfa do bosque sagrado, que se encontra em Para viver um grande amor, seu primeiro livro de prosa, publicado em 1962.

 

Alta noite. Carmem Miranda está sentada em um dos braços da poltrona em que Vinicius se encontra. Ela, sempre falante na companhia de nosso poeta, sempre contando casos marotos da fase “renascentista do samba carioca”, vivenciados ao lado de Mário Reis, Francisco Alves, Noel Rosa, Ary Barroso, agora se encontra quieta. Quem sabe cansada ou entediada do caras e bocas do jet set hollywoodiano. Numa poltrona ao lado, estira-se “o tedioso multimilionário e playboy” Howard Hughes (o mesmo que Leonardo DiCaprio encarnou recentemente no cinema em O Aviador), já apresentando ares desgrenhados de fim de festa, com quem Vinicius troca algumas palavras desencontradas. No meio da sala Zé Carioca (o paulista José Patrocínio Oliveira, músico e dublador de desenhos animados, apelidado assim pelo fato de Walt Disney ter se inspirado nele para criar o famoso personagem-símbolo do malandro brasileiro e da política da boa vizinhança) e Nestor Amaral (cantor e violonista do Bando da Lua que substituiu Garoto, na época em que o grupo acompanhava Carmem Miranda), “homens de sete instrumentos”, fazem o que podem para chamar a atenção dos convivas, na sua maioria, em plena ressaca. 

 

Nesse ambiente “desgastado em álcool e semostração”, com Vinicius já pensando em propor a Carmem uma saída à francesa, entreabre-se, repentinamente, uma cortina e surge a “mulher espetacular” que renovou a madrugada do poeta com sua beleza estonteante: “tão linda que foi como se tudo tivesse de repente desaparecido diante dela…” Olhando em torno “com um soberano ar de desprezo”, a deusa vem cambaleante, em ziguezague embriagado, porém sem perder a majestade do rosto, na direção de Carmem Miranda, assim que a descobre presente na sala. Pára diante dos dois e se rasga em elogios à futura musa dos tropicalistas. Num átimo, percebe Vinicius ao seu lado e quer saber, rainha absoluta, quem ele é. Sem escutar direito a resposta do vice-cônsul do Brasil, se aproxima dele e emenda outra pergunta, agora mais pessoal: “Você me acha bonita?” Diante dos elogios do poeta, concordou, mas fez uma ressalva: “Você está certo. Eu sou muito bonita. Mas moralmente… não cheiro muito bem”. Depois disso, a noite ganhou nova vida e Vinicius acabou dançando até clarear o dia com a linda moça: “ela bastante mais alta do que eu, o que permitia ouvir-lhe bater o coração, de resto levemente taquicárdico.” Na saída, o poeta quis saber quem era aquela maravilha, e Carmem Miranda respondeu: “É uma atriz nova que está entrando agora. Bonita, não é? Chama-se Ava Gardner.”

 

As axilas e as costas de Ingrid Bergman

 

Mas essa não foi a única diva da fase glamourosa da telona com quem Vinicius teve contato, ainda que ocasional, ou teceu loas. Afora a Carta aberta a Lena Horne, crítica de cinema escrita para A manhã, em dezembro de 1943, em que o poeta se desmancha de amores pela “mulata” “Leninha”, Vinicius nos fala de um encontro acidental, numa banca de jornal em Hollywood Boulevard, com nada mais nada menos do que Ingrid Bergman. Ou melhor, com as axilas e as costas de Ingrid Bergman. 

 

O fato nos é apresentado na crítica A asa do arcanjo, escrita para A vanguarda, em 22 de agosto de 1953. O poeta estava distraído, folheando jornais, quando ouviu uma voz feminina pedir licença para apanhar uma revista Vogue colocada numa parte mais alta da banca. No exato momento em que vai se virar para ver de quem era a voz, se depara, a um palmo do seu nariz, com a axila da famosa atriz. Visão que o deixou siderado: “Tratava-se da maior axila que já vi, em ser vivente de qualquer espécie, com seguramente uns dez centímetros de diâmetro, sem falar nas circunvizinhanças”. 

 

Assim que se recobrou do estado bandeiriano de alumbramento, causado pela vivência de uma experiência quase mística diante da realidade “daquele Renoir – que digo! diante daquele Picasso da fase azul”, Vinicius ainda teve tempo de ver as costas da valquíria, “umas boas costas de remador do Flamengo”; “Umas costas de arcanjo mesmo, no duro, com asa e tudo.”

 

A peleja infernal ente Vinicius e Zé Badu 

 

Bem, vamos agora, para concluirmos nossas histórias de poeta, passar para uma situação vivida por Vinicius por estas plagas. Vamos voltar no tempo, para o mesmo ano em que nosso herói seguiu para Londres, 1938, mais precisamente em agosto desse ano. O local: Ouro Preto. A missão: “debulhar os arquivos da Igreja de São Francisco de Assis, à cata de recibos comprovantes de umas tantas obras atribuídas a Antônio Francisco de Lisboa, o Aleijadinho”. A equipe: o escritor, e então chefe do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Mello Franco de Andrade; o arquiteto José Reis “e um poeta com o meu nome (Vinicius), que ainda não praticava a arte da prosa”. A verdadeira façanha de Vinicius ocorre no Hotel Toffolo, na hora da ceia de despedida da missão, uma mesa rabelaiseana que dispunha, entre outras coisas, de um indefectível leitão assado e bebidas para todos os gostos. Além dos três boêmios, se encontravam, ainda, Carlos Flexa Ribeiro, Wladimir Alves de Souza e a figura folclórica de Zé Badu, “violeiro, cantador e contador de velórios”, companhia constante nas noitadas dos visitantes. Essas informações constam da crônica Ouro Preto de Hoje Ouro Preto de sempre, de maio de 1953, disponível no livro de Vinicius Para uma menina com uma flor

 

Após uma estada que incluiu um namorico com uma jovem chamada, ironicamente, Marília; muita seresta regada a pinga com cerveja; e, “Tarde laboriosas, a verificar papel por papel nas imensas gavetas das enormes cômodas de jacarandá da sacristia de São Francisco de Assis”, nosso poeta se encontra agora nos fundos do Café do Hotel Toffolo, participando de um desafio de improviso inusitado com Zé Badu. O violeiro mineiro sempre gostou de provocar, na camaradagem cachaceira das noites frias da cidade, o poeta carioca com piadas e brincadeiras bairristas, retrucadas e levadas com humor por Vinicius. Agora, em plena festa da ceia, de pinho em punho, o cantador resolve tirar uma quadrinha espicaçando a carioquice de nosso herói que, participando de um desafio pela primeira vez, e estimulado pela platéia de comensais, lança de volta outra quadra “bolindo com Minas”. E assim, pouco a pouco, entre goladas e rimas, o negócio esquenta num crescendo, com as ofensas se tornando cada vez mais picantes de ambas as partes…

 

Vinicius, por incrível que pareça, começa a levar a melhor sobre o profissional da arte do improviso, talvez porque estivesse “um pouquinho mais sóbrio”. Até o instante inesperado em que o exímio cantador travou, não conseguindo mais responder às provocações de seu oponente. Nosso poeta, exuberante, além de continuar improvisando, ainda lança mais três quadrinhas seguidas, que acabaram por definir a incontestável vitória carioca na histórica peleja. A reação do violeiro não foi menos singular do que a sua derrota: parou imediatamente de tocar e abaixou a cabeça em silêncio. Evidentemente ferido em sua vaidade de grande artista popular, olhou com gravidade para nosso herói e para Rodrigo Mello Franco de Andrade. A seguir, num gesto que surpreendeu a todos, pega o seu revólver e começa a mandar balas para o alto, “sacudindo o braço em tiros de raiva”. O clima ficou carregado, a festa, obviamente, acabou naquele exato momento. 

 

Depois, na rua, os ânimos já acalmados, Zé Badu revela a Vinicius que só não “atirara em cima” porque ele “era do peito”…

 

André Gardel é brasileiro, nasceu em Canoas – RS, em 02/10/1962. Com dois anos de idade vai para o Rio de Janeiro, cidade onde mora até os dias de hoje. Além de escritor, é compositor de música popular e Professor Associado II do Curso de Letras e do PPGAC (Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas) da UNIRIO. Publicou 12 livros (de ensaios, dramaturgia, biografia, poesias, contos, didáticos), recebendo o Prêmio Carioca de Monografia de 1995 por O encontro entre Bandeira & Sinhô; e lançou os CDs Sons do Poema (1997), Voo da Cidade (2008), lua sobre o rio (2014) e Na palavra (2019). Irá publicar proximamente o romance A viagem de Ulisses pelo Rio Amazonas.

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